sexta-feira

As leis da mafia nas favelas brasileiras. A favela Pavão-Pavãozinho

O traficante é o presidente, o padre, o irmão. Dá emprego, protege, ajuda...
29.06.2007, Nuno Amaral, Rio de Janeiro
Ao final da tarde, há uma balada de ritmo certo a ecoar na praia de Ipanema, no Rio de Janeiro. Um "soldado" do tráfico desce à boca da favela. Solta uma rajada de metralhadora. É quase diário. Por norma, ao final da tarde. Os comerciantes da Praça General Osório, vizinhos acostumados da Favela Pavão-Pavãozinho conhecem o simbolismo da ruidosa partitura. "São os chefes do tráfico a anunciar que ainda governam, que escaparam à acção da polícia", esclarece Derlei Fonseca. Por norma, os tiros também se ouvem de manhã. À tarde, à noite. São os sinais da "guerra"que há décadas estilhaça a favela situada a pouco mais de 300 metros da praia mais cara do Brasil. O quotidiano espelha a rotina. Em Abril, saiu um sinal da "boca de fumo". Os soldados do tráfico ameaçaram descer o morro. Todo o comércio de Copacabana e Ipanema fechou por 12 horas. "Não temos solução: eles telefonam e nós fechamos as lojas", atalha Derlei.Vivem cerca de 80 mil pessoas na favela Pavão-Pavãozinho. O aglomerado tem uma rotina própria, fecha-se como um casulo, um microcosmos. "Só vou lá baixo para comprar televisões", explica um rapaz que diz chamar-se Dragão. O topo do morro é apenas acessível a alguns. Totalmente afastado das rotas policiais. "É lá que mora o chefe, tem cerca de 50 soldados", conta Ruth Diniz, presidente de uma das associações de moradores. Aqui e ali vêem-se homens empunhando metralhadoras. Crianças de pistola no cinto. "Como é que se pode concorrer? Com 14 anos, ganham mais que os pais, é horroroso", expõe Felipe Nélio, da ONG Viva o Rio. Há décadas que o grupo criminoso Amigos dos Amigos controla a Pavão-Pavãozinho. E mais umas tantas favelas do Rio. O líder é estimado, além de temido. É quem dá "emprego, que protege. É o líder que aconselha, que ajuda, que mata. Ou manda matar. "O traficante é o presidente, o padre, o irmão. Muitas das vezes, eles fazem mais que os poderes públicos", ilustra Carlos Costa, também da Viva o Rio.Da praia de Ipanema também se vê a Favela da Rocinha. Ali o quotidiano mudou. Há violência, há trafico. Mas também acordos. "Fizemos ver aos traficantes que eles ganham mais se não houver muito desacato", nota Costa. Um acordo dúbio para criar a paz possível. "Eles vendem mais, não há tanta acção da polícia e nós temos menos medo", conta o funcionário da organização não--governamental.No emaranhado de casas com vista para o mar vivem 127 mil pessoas, é a segunda maior favela da América Latina. "É claro que quem manda aqui são os traficantes, nós só tentamos criar alguma harmonia e impedir que as crianças se fascinem com esse dinheiro fácil", sorri. A Rocinha está encafuada entre dois túneis. Uma imagem que serve de metáfora a Carlos Costa."As crianças que não saem destes túneis vão para o tráfico, querem subir na vida e sobem para o topo do morro".Não matar quem trabalhaAté há dois anos, eram assassinadas 10 pessoas por semana, em média, na Favela da Rocinha. A macabra contabilidade baixou. Costa recorre a um discurso pueril para explicar o negócio com os traficantes. "Reunimo-nos e dissemos-lhes: "Não pode matar o carteiro, o cara está trabalhando, não pode matar o "policial", o cara também está trabalhando". A conversa originou uma estranha legislação no aglomerado. "Os soldados estão proibidos de disparar a eito, o chefe do tráfico também os obriga a pagar as balas disparadas sem justificação", relata Carlos Costa. Estas leis suavizaram o quotidiano, mas não o tráfico. A par do complexo do Alemão, da Pavão-Pavãozinho, da Favela do Jacarezinho, a Rocinha domina o tráfico de cocaína no Rio de Janeiro. No labirinto dos aglomerados trafica-se o produto entregue por gente do asfalto, por gente exterior à favela."É impossível acabar com isso. Se os traficantes não saem do morro, quem é que lhes faz chegar droga e as armas? É quem está no asfalto", atira o sociólogo Carlos Ventura.A ONG Rio de Paz olha para as 700 favelas do Rio com contundência. E estipula prioridades. "Só com muita acção do Estado e do Exército é que se pode quebrar esta espiral. Primeiro é preciso prender os traficantes, desarmá-los. Só depois podemos ir ao sonho da educação", defende António Costa, líder da ONG.
Obs: Divulgue-se pelo elevado valor sociológico desta peça.