domingo

Fátima e a fé. A pátria do homem são as suas ilusões

Costuma-se dizer que a fé move montanhas, embora os mais apressados prefiram a dinamite. Ora, Fátima, no mês de Maio, repete anualmente esta fezada dos portugueses dentro e fora de portas, muitas pessoas em todo o mundo partilham também deste ritual mariano e de devoção aos três Pastorinhos, e o Papa João Paulo II, um bom Papa, também valorizou este fenómeno tipicamente português que atravessou todo o século XX e ajudou a consolidar o regime de Salazar e as suas relações com a Igreja aprisionando ainda mais os portugueses, que assim ficaram dóceis, servis e domesticados ante o ancien regime. Ou seja, todo este fenómeno nos tornou moles enquanto povo no seio desta melancolia universal em que nos é dado viver.

Os políticos beatos, como Paulo Portas aproveitam esta engrenagem anual e fazem política na vã esperança de aumentar os votos que têm ou de consolidar os existentes. Os comunistas aproveitam para excomungar estes ritos e devoções, mas eles ainda tiveram devoções piores, sobretudo pelos efeitos das virtudes do comunismo que mataram milhões de pessoas inocentes. De modo que les uns et les autres vivem à sua maneira as suas próprias ilusões.

Tantos milhares de pessoas em Fátima, tanta devoção, tanta adesão aos elos do sobrenatural.. Isto não pode deixar de interpelar as mentes mais reflexivas deste mundo. A que se deverá tanta fé? Sem embargo doutras leituras avançamos aqui algumas pistas para a reflexão nesta pastoral do Macro num Domingo de sol tímido e de muita vela a queimar.

Creio que vivemos num tempo partido, sem grande esperança no futuro, daí a crise constante ter-se instalado na nossa forma de pensar e agir colectiva. Ou seja, o fracasso está sempre presente em nossas vidas, até na própria forma como completamos o ciclo e vamos direitinhos para a morte, por vezes a dormir, já que muitas pessoas morrem em pleno sono ou até no decurso de operações.

Por isso, acho que todos e cada um daqueles portugueses (e outros) que vão a Fátima sentem de forma mais acentuada o registo do fracasso do que a sensação do êxito, i.é, em nós campeia mais aquela experiência interior de derrota do que sucesso. Daí o aparecimento de tantas ilusões, nascidas daquele desencontro entre a frustração e o sonho por realizar. Na vida profissional, na saúde, nos amores, nos negócios...em cada motivação dos portugueses que vão a Fátima está uma promessa por cumprir, um sonho por realizar. E isso faz com que se queimem milhares e milhares de velas, porque naquela chama está também a ilusão de um amanhã que canta e pode mudar o curso dos acontecimentos na vidas daquelas pessoas, de todos nós.

No fundo, creio que é a consciência do fracasso comprovado que nos conduz à ilusão e à fé, e aqui a razão fica à porta, dado que os seus instrumentos não ajudaram na realização dos projectos entretanto gorados. Daí a experiência imediata ser sulcada por aquela tristeza e mágoa interior. Até eu em 1997 fui a Fátima, não para comer o bacalhau, mas para assistir a uma conferência sobre ONGs e, pela mão do meu amigo Acácio Catarino, acabei por ficar dois ou três dias. E fiquei bem hospedado, bem auxiliado, num quarto sem tv, rádio, apenas com uma Bíblia à cabeceira e o silêncio dos deuses. Percebi que se não regressasse a Lisboa rápido ter-me-ía convertido ao celibato, hoje, porventura, seria padre numa paróquia de Lisboa onde pecaria todos os dias, a toda a hora, por cada minuto. Resolvi continuar a ser sério.

Mas uma ida a Fátima, sobretudo sem multidões, acaba por ter um impacto diferente em nossas vidas, pomos a imaginação a trabalhar e depois é uma desgraça. Mas há ainda um corpo de razões alternativa que nos ajudam a explicar esta fé e esta adesão espontânea a Fátima.

1. Somos um povo abatido pelas circunstâncias, povoado de melancolia, frustração e mal-estar, Fátima ajuda a minorar esse sofrimento que também decorre das condições socioeconómicas em que vivem os 10 milhões de portugueses. Raramente se vêem milionários em Fátima, muito menos a gatinhar. Esses só são hiper-sensíveis ao dinheiro e aos negócios que o multiplicam. E os que lá vão fazem-nos disfarçados para não serem reconhecidos nem incomodadaos com as esmolas;

2. Depois uma ida a Fátima permite-nos reproduzir e ampliar aquilo que a falta de saúde, de dinheiro, de impotência, se sucesso, de amor e outros tantos afectos que ainda não têm designação comum, mas existem. Aquilo que a psicologia moderna designa de resposta cognitiva - que funciona como uma espécie de almofada subterrânea que visa amortecer a queda na vida das pessoas. É natura que os paralíticos queiram andar, os marrecos se possam verticalizar e os cegos possam ver. Os carteiristas também se safam bem, e muitos deles são saudáveis, apenas só têm falta de dinheiro - que encontram ali às pazadas nas pessoas mais desprevenidas. Que depois dizem, fui a Fátima com tanta fé e deus permitiu que me roubassem. Depois perdem o dinheiro e a fé..

3. Depois aquelas caminhadas brutais rebentam com as pessoas, e com tanto cansaço elas julgam que assim dispensaram um bom serviço a Deus, por isso merecem ser compensadas por essa caminhada. Resultado: Deus continua surdo e as pessoas regressam a casa com os pés cheios de bolhas e vão direitinhas para o Hospital;

4. Seguidamente, teremos de diferenciar os casos, pois os problemas são distintos consoante se trate de amor, de saúde, de dinheiro, profissional ou outro.. Aqui o termómetro dessa intensidade manda balanço e reflecte uma intensidade diferenciada na vida das pessoas. Não foi por acaso que, por regra, dantes se considerava que a mulher era vítima dos fracassos amorosos ou sentimentais, enquanto que o home, porque assim estava montada a estrutura de comando da sociedade, era mais vítima dos insucessos profissionais. De modo que os homens e as mulheres, uns e outros iam a Fátima em conjunto, no mesmo carro, mas cada um levava preocupações e fazia promessas diferentes: os homens pediam mais dinheiro, sucesso nos negócios - e aqueles que não eram gays reclamavam também melhores e mais económicas amantes; as mulheres, por seu turno, eram mais económicas e modestas, pediam apenas menos fracassos afectivos e menos maus tratos, por parte dos seus conjuges que as brindavam com uns mimos um tanto violentos, como era prática entre os portugueses até certa altura. Hoje as coisas mudaram, e os homens passaram a ser menos cobardes e já não batem tanto nas mulheres. Portanto, aqui Nossa Senhora de Fátima ouviu e acudiu às preocupações e promessas das mulheres.

Hoje tudo mudou, com a multidão das classes liberais e a força do mercado aquelas lógicas ainda provenientes e encubadas no regime salazarista alteraram-se radicalmente, a força de trabalho feminino alterou a natureza das coisas e a fé modificou também a sua composição. Se bem que as componentes afectivas e socioprofissional estejam sempre presentes nessa montanha da fé e do dinamite.

Mas a lição que tiro de todo este ritual de Maio, a antecipar a esperança e a fé num novo Verão, povoado também de mais mortes na estrada e doutros amigos que com a idade morrem de morte natural, é que a nossa pátria são, de facto - não a língua portuguesa como diria Fernando Pessoa - mas as nossas próprias ilusões - que nem sempre encontram tradução em palavras. A vida é sempre um jogo de antecipação e porvir, e nunca passamos de projectos com a vida aprazada.

Numa palavra: temos o futuro enjaulado numa caixa de fósforos, e a cada momento aquelas cabecinhas vermelhas podem arder a qualquer momento. E como daqui não passamos, pois a combustão é certa, o melhor mesmo é regressar às pequenas e miseráveis contabilidades do comer e beber um dia de cada vez, porque amanhã a ilusão pode ter-se acabado. Pois ainda nunca vi um morto dar continuidade às ilusões (e à fé e esperança) que teve enquanto vida.

Até lá vamos vivendo, o medo hobesiano da morte empurra-nos para Fátima, para o universo ilusionário das tais respostas cognitivas que nos afagam a alma e amortecem as dores. São milhões de pessoas a pensar o mesmo simultaneamente. Mas aconselhamos aqui a irem e a regressarem em segurança, não vá a morte - como tanta vez sucede - acontecer na estrada, apesar da fé..

PS: gostaríamos de dedicar esta reflexão aos três pastorinhos, que eram crianças pobres, subnutridas e também viveram a suas ilusões.