terça-feira

O legado contraditório de Boris Ieltsin

Um bom artigo de Albano Matos

O legado contraditório de Boris Ieltsin Albano Matos
Memória. Em Agosto de 1991 subiu a um tanque para apelar à resistência contra o derradeiro golpe do velho aparelho comunista da URSS. Ilegalizou o PC, despediu Gorbachev e dissolveu a URSS. Boris Ieltsin entrou então para a História, via CNN. Morreu agora em Moscovo, com 76 anos
Recordado pelos dirigentes estrangeiros como "um homem notável" (Tony Blair), "um patriota e um libertador" (Margaret Thatcher), Boris Ieltsin deixa um legado controverso aos seus compatriotas. Para uns, cumpriu um "destino trágico" (Mikhail Gorbachev), para outros foi o presidente "que vendeu o país", traindo os sonhos de milhões na hora em que a União Soviética acabou para deixar lugar a uma Rússia que rapidamente alimentou as ambições de grandeza nunca abandonadas desde o tempo dos czares. Morreu ontem, aos 76 anos, em Moscovo, de paragem cardíaca, doente e impopular.
A data em que Ieltsin entrou na História está devidamente identificada: 19 de Agosto de 1991. Em cima de um tanque, o então presidente da Federação Russa conclamava os seus compatriotas à resistência contra os golpistas que tinham sequestrado Gorbachev numa estância do Mar Negro e tentavam inverter a marcha da democratização. A CNN transmitiu, em directo, essas imagens para todo o mundo: uma espécie de assalto ao Palácio de Inverno em pleno Verão, em frente do parlamento, de certo modo símbolo desses novos tempos que recusavam o gesto desesperado de um PC moribundo.
Saído triunfante dessa prova, ainda para mais em comparação com o seu antigo amigo Gorbachev, politicamente fragilizado, Ieltsin iniciou aí a sua irresistível ascensão aos céus do novo Poder, escolhendo as batalhas e os inimigos e derrotando-os rapidamente: os comunistas, que ilegalizou; a URSS, que desmantelou; e Gorbachev, que lançou para o desemprego em Dezembro desse ano.
Parecia todo-poderoso. E era. Mas os seus inimigos - os que já existiam e os que ele fabricou à mesma velocidade com que bebia a vodca que lhe arruinou a saúde e a credibilidade política - dizem que terminou então a unamidade.
O homem que nascera em Sverdlosk em 1 de Fevereiro de 1931 e durante anos fora o camarada responsável pelo Partido Comunista na região, descobriu-se subitamente, durante a glasnost iniciada por Gorbachev um adepto fervoroso do caminho acelerado para a economia de mercado. Gorbachev viu nele um aliado, mas logo descobriu que não podia confiar nele: demasiado impulsivo, demasiado apressado.
Reformista e guerreiro
Tendo sido eleito presidente da Federação Russa em Junho de 1991, dois meses antes do derradeiro golpe comunista, Ieltsin emerge, no final desse ano, como um triunfador. O único desse ano vertiginoso. Ele e o seu primeiro-ministro, Egor Gaidar, deixam então os preços em roda livre, enquanto lançam um radical programa de reformas.
O "libertador" da Rússia experimenta então o reverso da medalha: manda bombardear o parlamento, que se opunha maioritariamente à sua política, provocando 150 mortos; e atira-se em guerra contra a Chechénia, que proclamara unilateralmente a independência, com o seu exército a ser acusado de praticar atrocidades sobre a população civil. Entre gaffes (pouco) diplomáticas e problemas de saúde recorrentes, torna-se cada vez mais controverso no seu país. À medida que o Estado se desagrega e fica à mercê das mafias, dispensa vertiginosamente primeiros-ministros (Gaidar, Tchernomirdine, Kirienko, Primakov, Stepachine), até que, em 9 de Agosto de 1999 - oito anos depois da sua consagração como "libertador" -, nomeia o chefe dos serviços secretos, Vladimir Putin. No último dia do ano, Putin tornar-se-ia presidente dessa "nova Rússia democrática, um Estado livre aberto ao mundo", como evocaria ontem, ao homenagear o antecessor.
Nas ruas de Moscovo, os russos escondem mal a sua aversão, relata Ursula Hyzy, da AFP. "Eu tinha confiança nele e ele vendeu o país", diz um médico reformado. "Era possível ter acabado com a guerra na Chechénia e fazer reformas, mas os altos comandos e os políticos ganhavam demasiado dinheiro com ela", exclamava um veterano.
O legado de Ieltsin assume aspectos contraditórios. A Rússia que hoje procura consolidar o seu poder num alargado espaço de influência é filha da sua acção, mas, a avaliar pelas reacções gerais, essa herança é mais apreciada em Londres ou Washington do que em M
oscovo.