sábado

Racionalidade e perturbação numa tarde pascal

" (...) A quem interessava que Judas fosse o culpado senão à própria Igreja? (...) Eu vou dizer-lhe qual o meu raciocínio. É que os instigadores e os decisores da morte de Cristo foram os representantes do poder temporal e do Sinédrio. Ora, a Igreja não podia permitir que essa realidade fosse divulgada por espelhar a sua própria conduta. Daí que Judas Iscariotes tenha sido condenado pelos homens. À revelia de Cristo, que não o condena em parte alguma dos evangelhos. (...) Os testemunhos que temos dizem-nos claramente que o décimo segundo discípulo a ser escolhido foi Judas Iscariotes. ele era um dos doze e, assim, foi considerado no Didakhé, que foi compilado até ao ano 100, e que era um manual litúrgico, cujo nome completo é A doutrina do Senhor através dos doze apóstolos aos gentios. Mais uma vez, algo não bate certo. Ou bem que Judas Iscariotes foi um apóstolo ou bem que foi um traidor cobarde que não aguentou o seu crime! No século I da nossa época, ele era um apóstolo e está referido como tal. Quando passou a ser traidor? Quando a Igreja se corrompeu e se deu conta que tinha poder entre os homens! (...) - Repito, Judas Iscariotes não traiu Jesus Cristo! Judas foi o mais santo dos discípulos. Foi o único, entre os doze, em quem Jesus confiou que o iria ajudar a cumprir a sua missão. Sabemos que Jesus vacilou perante a chegada da hora da prisão e do sofrimento. Nenhum dos outros o ajudaria a completar o plano divino. Porque eram bons? Não. porque eram fracos. Porque não raciocinavam a fé, eram ainda muito terrenos e apegados aos afectos. Ele era sobretudo espírito e precisava de um cooperante capaz de desencadear o passo seguinte, que fosse um espírito mais aperfeiçoado que o dos outros escolhidos, que aceitasse ser o culpado. (...) Veja, se Cristo predisse a Pedro que este o iria trair, não saberia que Judas o faria? E Jesus nunca o disse. Terminada a Ceia, disse-lhe foi para ir fazer o que tinha a fazer e depressa. Estas palavras revelam que ambos conheciam o plano, logo Judas tinha por missão ir buscar os guardas, em cumplicidade com Cristo e com permissão de Deus, porque nada é feito sem o seu conhecimento e esta era a sua vontade. É o próprio Jesus que o diz. Quem decidiu a condenação, a punição e a morte de Jesus Cristo foi o poder religioso e o poder temporal. Os homens podiam ter feito outro julgamento se não fossem os seus interesses mesquinhos, podiam ter optado pela tolerância e pelo respeito pela liberdade de opinião. E a doutrina de Cristo teria logo vencido em paz. (...) - Para que foi a morte de Cristo? Que utilidade lhe acha? - A morte de Jesus é a metáfora perfeita de que cabe aos homens o livre arbítrio de escolher o caminho que querem percorrer. Sem Judas Iscariotes, a ressurreição não teria acontecido, porque Jesus não teria sido julgado e morto. A morte de Jesus não foi para nossa salvação, foi a nossa condenação. (...) São Judas Iscariotes é o mais abnegado dos santos cristãos, porque o seu martírio foi e é o de ser o maldito. O mais nobre e dedicado de todos os discípulos foi condenado a ser o mais esquecido e o menos bem querido. (...) À imagem de Hirão, ele aceitou aguardar o tempo necessário e exacto para que a verdade seja revelada e, como prova de ser um espírito mais elevado que os restantes, aceitou o simbolismo da sua morte interior para o mundo em respeito à lei do devir interior, progredindo espiritualmente. (...) - Sabe que Hirão foi artesão no palácio de Salomão e no Templo de Jerusalém? - Sei e sei também que é considerado pela Maçonaria como seu mestre fundador. Mas não tem nada a ver com o que estava a dizer. É o simbolismo do mito que importa, porque, tal como Hirão, Judas representa o Saber, a Tolerância e o Desprendimento Generoso e foi condenado pela Hipocrisia Fanatizante, pela Ignorância e pela Ganância, ou seja, os doutores do Templo, Herodes e Pilatos. (...) " in Ferreira, Fátima Pinto, São Judas Iscariotes 2006, Edições Cosmos, Lisboa