domingo

A nova economia: pobreza vs turbo-capitalismo. Duas reflexões

Há dias reencontrei uma pessoa rica em valores simples. Um autodidacta que passou para o outro lado da vida: a marginalidade. Errante, transformou-se num filósofo de arcada. Comia, dormia e pensava nas traseiras do prédio onde habitava. Íntimo do álcool, dos plásticos onde guardava restos de comida oferecida e dos trapos velhos, emitia o seu saber sobre tudo. Adormecia com os gatos e acordava com os pombos que alimentava. Confundia-se com os animais. Durante anos teve residência fixa na mesma arcada donde o avistava da janela de minha casa. E era dela que agendava briefings com o filósofo. Resultado: ficámos amigos.
Um dia perguntei-lhe o que desejaria ter sido em termos profissionais. Retorquiu o seguinte: “só queria o dinheiro para comprar a morte e, assim, viver eternamente; “depois compraria um aquário gigante, mas enchia-o de vinho e punha-me lá dentro a nadar como um peixe”. Quando regressei à realidade, constatei que as pessoas ditas normais, diziam coisas diferentes: “Estou a passar por um mau momento”; “este é um período diferente”.
Mas depressa me apercebi de que esses períodos difíceis ocorriam com uma frequência cada vez maior; tornaram-se uma característica permanente da vida dessas pessoas. Contudo, alguns amigos diziam-me, “isto está difícil, é o mês de Agosto; a Primavera é sempre uma altura má”, etc. Interessei-me pelo fenómeno. Cedo descobri que se tratava de gente madura e com talento. Muitos tinham carreira na administração pública, editores, engenheiros, cientistas, executivos, professores e outros liberais. Viviam em boas casas, tinham carros de alta cilindrada, e até barcos e veraneavam várias vezes ao ano.
Na prática, todos elas reconheceram estarem a viver melhor do que dantes, a ganhar mais dinheiro, a viver em casas maiores, a ter carros mais potentes, usar roupas de marca. Porém, quase sem excepção, estavam todas numa “fase difícil”. Foi só ao fim de algum tempo que associei a abundância da nossa sociedade ao facto de essas pessoas se sentirem cada vez mais infelizes. Erguia-se diante mim uma tremenda contradição.
Resolvi então marcar novo briefing e lá fui para a arcada debater as questões do nosso tempo com o meu amigo filósofo de rua. Ante a contradição, deu-me algumas explicações que exprimiu sob a forma interrogativa. Qual é a sensação de pobreza? Que sofrimento psicológico a acompanha?. Acrescentou que a pobreza sempre andou associada com o medo e a ansiedade acerca do futuro, o medo do abandono (como lhe sucedera com a família), o medo do perigo físico por dormir ao relento, o medo do assalto constante, o medo da solidão. O álcool ajudava a criar essa fronteira de segurança ilusória e manter a temperatura do corpo.
Era assim que este amigo via os seus semelhantes: “os pobres eram gente encurralada, tensa, ardilosa, rude, sem esperança, consumida por fantasias, drogas e venenos que lhes destruíam os corpos sem evasão possível”. Dizia-me: “vejo-me a viver e a morrer como um animal. As nossas vidas são a própria imagem do Inferno. Férias, lazer, reforma, família, divertimento – tudo isso desapareceu. O tempo já não nos pertence. A moeda do tempo depreciou-se e degradou-se tanto que desapareceu”.
Dizia que tudo isso sucede por causa da globalização (in)feliz, da complexidade e da evolução sem controlo das sociedades. A reunião da OMC em Cancún para a liberalização do comércio mundial, reflecte essa desigualdade falseando o jogo da concorrência, agravada com os imorais subsídios que os países ricos dão aos seus produtores, barrando o acesso aos países pobres.
É essa incerteza, como a vida dos pobres, que alimenta o actual debate político (encobrindo interesses) mas também apurando a teoria dos sistemas complexos dinamizada pelos múltiplos actores e relações que modernizam as sociedades e as desenvolvem (sem controlo).
Confesso que aprendi mais sobre teoria da globalização na arcada do prédio de Benfica do que anos na academia ou nas conferências da Gulbenkian. Em lugar do controlo voluntarista da política, o que se deve identificar é um processo de co-evolução, onde as inter-relações entre um grande número de agentes são mais determinantes do que as decisões emanadas do poder político ou do poder económico. Globalização, para este filósofo de arcada, é planificação sem controlo. A esta luz, o desenvolvimento das redes digitais e os canais de mobilidade dos factores produtivos e das mercadorias e serviços, não foram planificados por ninguém, resultaram do funcionamento do sistema no seu conjunto.
Para o Zé Carlos, a quem dedico este texto, a globalização é uma soma de contingências, um contexto de risco e incerteza. O desequilíbrio biológico pode ser-lhe fatal, mas não tem de o ser para a espécie, cuja mudança lhe permitirá a adaptação a novas condições de vida. Dramático para mim não é saber que o Zé Carlos não vê TV nem lê jornais, mas que continua a dormir ao relento e os políticos não perdem o sono em boas casas. Um sono que é “um monstro apoiado em muletas” como explicou Freud e desenhou Dalí… Humanizar a “besta” Pela 1ª vez na história o capitalismo apresenta-se sem gerar emprego nem desenvolvimento económico e social. Porque será que isto acontece? À primeira vista esta constatação parece paradoxal, pois nunca como hoje o desenvolvimento tecnológico; a valorização da competição e da livre iniciativa, ou seja, o império da lei, foram tão vincados. Mas ao lado desse activo da globalização feliz parece sobrepor-se um passivo da globalização negativa, com custos dramáticos na vida das populações. Esse passivo decorre, sobretudo na Europa (alargada), uma vez que nos EUA a crise é mais atenuada, da transposição problemática da ética protestante e calvinista que formatou o espírito capitalista em toda a área do Ocidente.
Na prática, todos aqueles países que importaram este modelo de capitalismo made in USA, incorporando nele apenas a sua dimensão económica, com prejuízo da dimensão social, estão hoje com inúmeros problemas sociais que tolhem o seu modelo de desenvolvimento. I.é, a liberalização dos mercados, a privatização dos serviços e a globalização competitiva - sem os correspondentes contrapesos sociais e culturais – acaba, necessariamente, por infligir danos sociais dramáticos às populações menos equipadas do ponto de vista cultural, social e tecnológico. Pois é aí que as resistências às mudanças se fazem mais sentir. Portugal é um desses exemplos.
Que fazer, então, para disciplinar e humanizar os efeitos nefastos desse capitalismo selvagem? Julgamos que a resposta mais adequada consiste em fortalecer as instituições da sociedade civil, ajustando aquela ética protestante, sistematizada por Max Weber, às necessidades de cada país. Isto é, à lógica neoliberal, que o Consenso de Washington (sob intensa contestação mundial) reforçou, deve-se sobrepor a ética personalista e uma visão culturalista a fim de resolver os principais problemas de cariz social. Sob pena de eclodirem descontentamentos sociais em cadeia resultantes de acumuladas frustrações económicas derivadas daquele “consenso”.
Neste enredo algo terá de ser feito para renovar o capitalismo dos vencedores – que enchem os cemitérios de empresas falidas e de milhões de desempregados em todo o mundo. Mas, por outro lado, também não se vislumbra como é que os “vencidos” deste processo desigual possam fazer o turn over da situação e criar um novo sistema. As desigualdades sociais agudizam os conflitos religiosos, e ambos criam um caldo de cultura que leva ao terrorismo em rede (catastrófico, globalitário e suicidário) de que já temos amarga experiência.
O que nos remete para outra questão: qual a configuração política emergente do Estado? Aqui temos uma bifurcação: continuar a ser a velha e pesada estrutura burocrática que faz de conta que ainda é um Estado-Providência; ou, como parece mais credível, articular os seus interesses e os seus recursos com os da sociedade civil no sentido de abrir uma frente comum em vista às reformas a concretizar. Na saúde, na educação, na justiça, no mercado, etc.
A arte desta magna reforma estará, porventura, na harmonização das agendas e dos interesses de todos esses players: Estados e actores privados. E todos eles comungando do valor da competição baseado no pluralismo dos valores ocidentais e no conjunto de direitos que informam o rule of law.
Conseguir esta reforma das reformas seria, afinal, renovar as regras do próprio sistema político (económico e social) europeu. Seria reformar o Estado de Bem-Estar que hoje agoniza na antecâmara da morte. Seria, por fim, casar a ética liberal com a ética de responsabilidade social, num ajustamento de Estado-sociedade-mercado fortalecendo as instituições da sociedade civil, já com o Estado emagrecido, mais musculado, racional, enérgico e eficaz.
De molde a que os verdadeiros inimigos fossem, na realidade, os problemas económicos e sociais, potenciados por aquela cultura de imitação incompleta (e desumanizada) que a Europa bebeu da criatura que, historicamente, gerou: a ética calvinista que fez da América o país mais rico do mundo perante o espanto da Europa. O problema está em disciplinar e humanizar a “besta”.

O texto infra é da autoria do Jumento - um dos blogs mais criativos e sustentados da blogosfera nacional. Já aqui o dissémos e repetimos, mesmo que ele não precise dos meus comentários para nada. Levanta as questões mais oportunas e denuncia-as de forma algo incisiva e em tempo real, ou seja, faz serviço social. Todos aqueles que o fazem, e julgo-me também nesse role, ainda que modestamente, deveriam ser pagos pelo Estado - já que contribuímos para o aumento e reforço da consciencialização social, da justiça social entre os homens de bem, a busca de novas soluções no domínio da política pura e da política aplicada aos problemas sociais e económicos. Mesmo que discorde pontualmente de algumas formulações como deste título - já que a evocação da URSS faz-me lembrar os Gulags e nunca se remedeia uma situação no presente e no futuro invocando um totalitarismo - qualquer que ele seja (de direita ou de esquerda). Além de que o medo nunca foi bom conselheiro, até diminui a vontade de um homem estar com uma mulher, quanto mais mexer em toda a organização e funcionamento de uma sociedade. Mas a conjuntura merece este tipo de formulações. E por falar em questões sociais - publiquei o ano passado duas reflexões - supra-publicadas - que depois saíram no livro - Em Busca da Globalização feliz, 2005 - que por terem conteúdo social e se reportarem ao turbocapitalismo julgo de interesse intelectual e social para os acontecimentos que decorrem em França, e que amanhã podem povoar Portugal inteiro. Afinal, o número de manifestantes em França é já maior do que o nosso número de desempregados. E por vezes até meto as mãos na cabeça só de pensar que essa malta toda - uma bela manhã de pré-Primavera - pode acordar mal-disposta e resolve paralisar o país. E nem é preciso muita organização para o efeito. Nem é preciso meterem o BE nisto, nem o PCP, nem a CGTP... Bom, enquanto tal não sucede, e oxalá não suceda, resta-nos calibrar o raciocínio e meditar na m..... de mundo que fizémos e na m.... maior de mundo que, por este andar, deixaremos aos nossos filhos. Dá que pensar.

Afinal a URSS faz falta?
O chamado modelo social europeu deveu-se, em grande medida, ao medo do comunismo alimentado pela União Soviética e pelo poder dos partidos comunistas dos países da Europa Ocidental, com destaque para os da França e Itália. Com o fim da URSS e o quase desaparecimento dos partidos comunistas, e com os sindicatos a tentarem sobreviver apostando mais na defesa de pequenos interesses corporativos do que na dos trabalhadores enquanto grupo social, existe o risco de o modelo social europeu desmoronar? Começa a ser evidente que sim, o fim do medo do comunismo está a desencadear profundas alterações no modelo económico europeu e mesmo mundial, e como se isso não bastasse está a resultar igualmente em profundas mudanças culturais e políticas. No plano social tudo é dispensável a troco da competitividade, primeiro as funções do Estado, depois as regulamentações sociais, depois os salários, deixaram de ser os países menos desenvolvidos a quererem alcançar as condições sociais dos países rios, são estes a invejarem as vantagens competitivas daqueles. As lutas partidárias deixaram de se centrar nas diferenças ideológicas, os partidos que disputam o poder fazem-nos apresentando-se como os que propõem as melhores soluções para assegurar a competitividade económica, as campanhas eleitorais são campanhas mediáticas e que se vende o embrulho, porque o produto tende a ser normalizado. O pensamento político deixou de fazer a diferença, ganha eleições quem oferece melhores garantias ao poder económico recebendo os financiamentos mais generosos, os eleitores passaram a ser tratados consumidores e os debates políticos são prolongamentos dos intervalos para publicidade. O político mais bem sucedido é o que consegue adoptar as medidas mais duras com menos protestos, o sucesso das políticas deixou de ser avaliado por indicadores de bem-estar ou mesmo de desenvolvimento económico, as cotações da bolsa fazem as alegrias dos decisores e as OPAs um sinal de progresso. Sem o medo do comunismo deixaram de haver classes sociais na acepção marxista do conceito, agora há os bem sucedidos e os falhados, de um lado os que tiveram sucesso financeiro, pouco importando se graças à gestão das suas empresas, ao jeito para dar pontapés na bola ou à capacidade de se corromper sem cair nas malhas de uma justiça que não existe; do outro, os que não enriqueceram, sejam empregadas domésticas ou professores catedráticos. Será este modelo viável durante quanto tempo?