O homem, o sílex, o túmulo
O homem é um animal que cria ferramentas e túmulos. Também gosta de crucifixos, como vimos na reflexão infra. Caça e mata - para sobreviver. Mas parece que também reza, para sobreviver - melhor. Quando Leakey, em 1954, descobriu na África Oriental ossadas semelhantes às dos macacos actuais e fez remontar a sua existência a 2 milhões de anos, não foi a forma nem o volume do crânio que lhe fizeram dizer que eram os mais remotos dos homens até então conhecidos; mas o facto de ao lado desses ossos se encontrarem pedras que não puderam ser talhadas e tornadas cortantes senão para servirem de arma ou ferramenta.
Aqui começa o homem.
Certamente, que o macaco pode apanhar essa pedra e até arremessá-la, apoderar-se de um ramo e, com ele, facilitar a sua colheita ou promover a sua defesa. Vemos isso quando vamos ao Zoo de Lisboa, quando alguém enerva os macacos, e eles, é claro, retribuem com pedaços de excrementos que jogam à cara dos turistas mais incautos. Por vezes, assistimos a fantochadas semelhantes em alguns parlamentos do mundo dito desenvolvido. Outros, macacos chegam até a roubar máquinas fotográficas aos turistas mais incautos, e depois tentam dar cursos aos "colegas" acerca de como funcionam as Sony e as Pentax que apanham aos ditos turistas.
Mas aqui o ponto é outro; ou seja, é do homem que se trata. Essa máquina de cultura que por vezes vira besta, e de que o crucifixo é uma sinalização dessa singularidade. Mas porque razão o homem não produziu só utensílios para a caça, virados para o exterior? e produziu, também, utensílios "outros" - como os ícones religiosos e muitas outras imagens de valor conexo, que não tinham uma finalidade imediata?
Ora é aqui que está a chave do problema. O homem passou a trabalhar o sílex para o tornar cortante - deixou de ser um fim em si. Evidentemente, que isso era crucial, doutro modo não se conseguiria esquartejar os animais que proviam à sua manutenção diária. Ou até para cortar qualquer outra coisa.
Mas com o tempo o homem tornou-se numa máquina mais sofisticada. O tempo, sempre o TEMPO, torna-se um tempo HUMANO, ou seja, medido já não apenas pela alternância das estações, dos dias e das noites, mas por actos subordinados uns aos outros como meios e fins.
E aqui nasce também a capacidade de abstracção, desta feita através do utensílio, não já pelo acto de cortar ou de perfurar, com vista à sua sobrevivência, mas sim do desenvolvimento da tal capacidade de abstracção que lhe permite virar-se para dentro, instrospeccionar-se; "caçar-se" a si próprio. É aí que ele se começa a interrogar quem é? donde veio e para onde vai...
É, em suma, já com esse distanciamento em relação à sua sobrevivência e aos perigos da natureza no conjunto dos actos do homem, que este utiliza essa sua capacidade de abstracção e de espanto que o empurra para a filosofia, e através dessas múltiplas orações perceber qual seria o seu papel no mundo.
E tudo isto é assim e não doutra forma porquê? Faça o homem utensílios de caça ou de oração, instrumentos para matar ou para reflectir, dispositivos de domínio sobre a natureza ou sistemas intelectuais para a contemplar - a sua luta, creio, é sempre contra o esmagamento da lei da morte, da degradação progressiva que a isso conduz.
Eu - como homem - e todos serão assim, creio - olhamos para a VIDA como o contrário da entropia. E a criação dessa tal ordem humana contra o caos que é a morte consiste no começo dessa grande tragédia optimista que dá pelo nome de história humana.
Julgo, em síntese, que isto nos ajudará a perceber a importância daqueles crucifixos na parede das escolas (e fora delas) que nos habituámos a ver e - nalguns casos a respeitar, em conformidade com a nossa cultura e matriz de valores ocidentais.
Uns - quando em dificuldades - agarram-se ao pó branco e vêm aí a sua oração que os fazem voar e, não raro, essa é uma viagem alucinógena que termina quase sempre de pernas e braços partidos e neurónios queimados; outros, mais sábios, olham para um crucifixo e dali extraem muitas conjecturas.
Afinal, o que é que sinto quando vejo um crucifixo? senão uma vontade e uma tentativa tremenda de abolir esse animal que há em nós. Abolir esse limite de animalidade, contornar sorrateiramente a barreira entre a vida e a morte, entre o animal e o homem, como sugerem os deuses com cabeças de animais. Isto ainda é, creio, a melhor opção que nos resta antes de marcarmos o tal encontro com a nossa última morada que fica uns palmos abaixo da terra. Até porque dizem que os mortos renascem numa nova forma de vida, e os troncos das árvores, os seus ramos e as suas folhas serão depois as nossas artérias expostas ao vento.
Somos homens, mas agora sob a forma de árvores, com muitos troncos e inúmeras ramos e milhares de folhas.
PS: por tudo isto, quando vejo e ouço a senhora ministra da Educação dizer o que diz, fazer o que faz - só tenho vontade de lhe oferecer um crucifixo. Não dos grandes, daqueles de carvalho para lhe dar com ele na cachimónia como forma de a espevitar, Não!! Dava-lhe antes um crucifixo de silício e tentava explicar-lhe melhor a diferença entre nós, os homens - e os animais. Talvez assim ela conseguisse ser uma razoável ministra do que quer seja. Com o sem crucifixo; com ou sem religisão. Mas, em todo o caso, com uma referência apontada por um sistema cultural.
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