O velho leão... A questão da fealdade em Sócrates
Só encontro um único mérito na entrevista que o DN fez a Freitas do Amaral e da qual se procurou fazer um estardalhaço verónico. Money talks... O provincianismo também... Depois, a guerra com o mercado - leia-se com o jornal Público - e a necessidade de dizer estamos aqui - comprem-nos!!!- fez o resto. As rádios e TV também precisam de "broncas" para continuar a alienar o povão e continuar a viver da publicidade que só a muito custo vai angariando. Pois os tempos estão difíceis e a qualidade das notícias parece que acompanham essa degradação. Enfim, é a civilização que criámos - agora temos de levar com ela - com jornalistas falando do vazio numa sala escura num dia de inverno chuvoso...
Mas, na verdade, esse mérito é fazer-nos regressar ao baú da história e reinventar a Filosofia através da vida, pensamento e obra de um dos maiores vultos de todos os tempos. Refiro-me, naturalmente - a Sócrates - o Filósofo de Atenas. Foi nesse mundo helénico - desde o séc. VI a.C. que tudo começou. Os pré-socráticos - que explicavam o Universo pelos elementos da Natureza, seguido do aparecimento da verdadeira Filosofia - que destruiu mitos.
Sócrates tinha a ideia luminosa de que, se duas pessoas inseguras entrassem em diálogo, podiam encontrar as suas próprias verdades, as verdades universais... Questionando-se um ao outro e examinando os preconceitos um do outro, os defeitos, mas sem ataques pessoais nem insultos.. Procurando somente aquilo em que concordavam e, gradualmente, apreender o sentido da vida que é, naturalmente, o da busca incessante a caminho da felicidade, do saber para ser justo.
Mas o ponto que aqui quero ressaltar é outro: o de saber em que medida a fealdade - dado que Sócrates era considerado o homem mais feio de Atenas condicionou toda a sua vida. Lembro-me de como funcionavam as relações sociais no ciclo, no liceu e depois na faculdade: as gordinhas menos belas (se é que há pessoas feias) eram sempre as mais amáveis e prestáveis e, ao mesmo tempo, as mais desprezadas e marginalizadas pelo grupo. Ora isto não sucede por acaso, obviamente. Na sua raiz estão razões de aceitação e de integração social, estéticas e outras que a nossa sociedade de consumo a publicidade intensiva fomenta ad nauseum.
Ora com Sócrates passou-se exactamente o mesmo. Tratva-se dum homem com formas faciais profundamente atípicas: a sua face era larga, de lábios grossos, pálpebras pesadas e nariz arrebitado. Eis o retrato clássico que que fizeram dele. Depois também disseram que se tratava de alguém com um temperamento irascível - tipo Alberto João Jardim - e de emoções violentas e desgovernadas, com fortes impulsos dionisíacos e altamente sensualista. Uma imagem que constrastava com o o retrato tradicional que fazia de Sócrates um homem disciplinado, um exemplo a seguir. As pessoas - à época - apreciavam esse contraste.
Mas quando contaram essa descrição a Sócrates ele concordou; reconhecendo-se nela e condordando inteiramente com o retrato. Admitiu que a sua vida tinha sido passada a aprender a controlar e a transformar criativamente a sua sensualidade em actividades mais importantes a fim de evitar cair na decadência dos costumes e da moral de então.
Sócrates era, pois, notavelmente feio. Isto era tanto mais visível numa sociedade que idolatrava o culto da beleza. É aí que se coloca a questão: como conviveu Sócrates com a sua própria imperfeição física/estética perante um meio em que todas as pessoas se deleitavam com estátuas, pinturas e corpos extraordináriamente belos e faces singularmente bonitas?
Eis o problema da fealdade que agora tocava a esfera da filosofia. Só que à altura o conceito de beleza também povoava o interior das pessoas, ou seja, mesmo não se sendo portador duma face e dum corpo dionisíaco podia-se, ao menos, cultivar elevados padrões morais, espirituais e intelectuais cuja aparência contrastava com o conceito de beleza exterior mas que, ao mesmo tempo, era inigualável e duma valia incomensuravelmente superior. Ora, foi nisso que Sócrates apostou, qui ça para compensar a sua própria frustração de não ser um homem bonito, segundo os padrões estéticos vigentes à época.
Desse modo, Sócrates era, assim, alguém que representava uma beleza exterior repelente, mas tinha uma inigualável beleza (e saber) interior capaz de fazer inveja (e irritar) todos aqueles que o julgaram por (injustamente) corromper a juventude pelas ruas de Atenas.
Sabe-se que Sócrates em criança teve vergonha desse seu aspecto físico, dessa sua fealdade, mas mais tarde essa frustração tornou-se numa mola que estimulou e desenvolveu a sua aptidão para argumentar e discutir com uma virtude para desviar a atenção da sua própria aparência. Talvez tenha sido isso que lhe conferiu a tal qualidade especial tornando-o procurado pelos jovens e homens livres de Atenas que queriam aprender sempre mais e mais, apesar da sua aparência grotesca.
Sócrates estava assim a meio caminho de uma abóbora rachada e de um deus a adorar. Feio por fora, bonito e culto por dentro. Era como se a ruína ocultasse um território rico em tesouros celestiais, que os mais persistentes trilhavam a caminho da sabedoria.
Será que foi devido à sua fealdade que Sócrates se tornou no homem mais sábio do mundo? Afinal, se não fosse a entrevista de Freitas ao dN jamais colocaria esta questão. Mas o intermediário - seu contemporâneo - ié, o grande Comandante militar que foi Xenofonte (citado por Freitas) - abriu essa vereda por onde agora passamos este argumento. Ou seja, se Sócrates fosse um homem considerado belo - segundo os padrões da época - o mundo teria testemunhado uma tão grande (e fatal) coerência e harmonias interiores - como fez prova a coaragem do Mestre dos mestres?!
Cremos que não. Contudo, esta tese é difícil de provar. Mas o seu exemplo e formulação servem perfeitamente para o presente, pois é frequente - nesta nossa sociedade do consumo altamente exigente em termos de aparência - esta mesma questão (da beleza) colocar-se: para arranjar emprego, para asegurar a integração social e o mais. A fealdade é - e continuará a ser - um obstáculo ao desenvolvimento pessoal, salvo se as pessoas seguirem o exemplo do velho leão. É nesse trajecto que a fealdade se transforma depois numa espécie de carisma, num magnetismo que a dada altura fez prova de sucesso. Ex: santana Lopes na Figueira da Foz onde cultivou muitas Palmeiras; e depois em Lisboa, onde deixou um cacho de buracos. Ao invés, Carrilho - porque é vaidoso e arrogante - já não poderá capitalizar a sua imagem em votos.
Foi, portanto, a fealdade de Sócrates que o empurrou para o desenvolvimento intelectual, a partir do qual granjeou carisma e reputação pelas suas capacidades extraordinárias. Será que há seguidores (belos ou feios) de Sócrates em Portugal!? Em caso afirmativo - não deixo de me perguntar qual será o seu aspecto...
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