sábado

Portugal vive o síndrome do aprendiz de feiticeiro. Evocação de Goethe




Há um princípio básico da física (e também da política) e da organização da vida social em geral que radica na ideia que deve reger todos os movimentos que suscitamos: não devemos fazer fogo onde não sabemos como extingui-lo. O conhecido poema de Goethe acerca do insensato aprendiz de feiticeiro mostra-nos que não devemos invocar os espíritos enquanto não conhecermos a fórmula de nos livrarmos deles. 

Em Portugal o BPN, um puro caso de Polícia associado a um bando de malfeitores identificados, representa um desses espíritos que ensombra um povo inteiro, sem que a Justiça nada faça para inquirir, apurar, julgar e condenar esses culpados, que a sociedade inteira conhece, assim como conhece as suas ligações pessoais e institucionais.

Esta tensão poética evoca-me a forma desastrada como o PM do (ainda) XIX Governo Constitucional faz as nomeações para a "sua" remodelação, qual recauchutagem em que ninguém acredita, excepto Belém, que apadrinhou este (re)casamento de pura conveniência, ou seja, uma relação em que o interesse nacional, muitas vezes referido, não está (esteve) presente. Até porque a democracia é cara, mas é sempre preferível a remendos sem qualidade. Em em caso de graves dúvidas, devolve-se a palavra ao povo, não se avoca esse poder à discricionariedade duma interpretação presidencial (quase à "presidencialismo puro" norte-americano) que foi tudo menos rigorosa, imparcial e pacífica.

Por outro lado, o famoso poema de Goethe relembra-nos que todos os instrumentos de comando têm (ou devem ter) dois interruptores: o on e o off; e sempre que aceleramos em qualquer máquina, devemos sempre poder contar com o acelerador mas também com o sistema de travagem. São, com efeito, estes dois sistemas interligados que se vigiam e anulam entre si que oferecem garantias de segurança às pessoas, às empresas, enfim, à vida dos grandes agregados humanos. 

Nestes casos, a esfera da competência técnica é inseparável do domínio da função de reversibilidade. Quando escalamos esta relação para a esfera política a intensidade daquele princípio aumenta a sua intensidade, já que à mulher de César não basta parecer...

Quer isto dizer que as nomeações feitas para o remendado XIX Governo (in)Constitucional, na sequência das demissões do então ministro das Finanças e Negócios Estrangeiros, não podiam ter sido mais desastrosas, até no domínio da estrita legalidade e transparência do processo democrático que deve presidir à vida pública e que relacionada com os curricula do actual MNE, do secretário de Estado do Tesouro e da própria ministra das Finanças, representa um cenário dantesco na democracia portuguesa. Já para não falar nas omissões deliberadas nos curricula de Paulo Portas de de Passos Coelho que omitiram, respectivamente, a sua passagem pelo Centro de Sondagens da Universidade Moderna e de empresas onde este trabalhou, muito ligada a captura de fundos comunitários envoltas em polémica. 

Uma das ilações a extrair de todas estas relações degradadas, que degradam a vida pública portuguesa, facilitando a corrupção em diversos sectores da vida nacional, estão duas verdades eternas que urge sublinhar: 1) a de que nunca se pode acumular determinado nível de poder sem perder nada nesse processo; 2) nem todas as relações são remediáveis, nem a história tem um botão que permita fazer a rebobinagem a nosso belo prazer, como se duma manipulação a plasticina se tratasse. A ponto de dizermos que a demissão de o ex-MNE foi uma fantasia; e a demissão de Gaspar resultou duma miragem inventada pelos fulanos do PCP e do BE, após um jantar bem regado, num restaurante típico do Bairro Alto, numa noite de breu.

De facto, podemos produzir o nosso movimento e encaminhá-lo num certo sentido, a fim de o fazer convergir com o objectivo traçado, mas nunca podemos voltar para trás e apagar com uma borracha o que a história já registou. A história tem os seus próprios ponteiros e ninguém manda no tempo, que também obedece a leis próprias. 

Vivemos em Portugal uma crise múltipla: económica, financeira, social, moral, ética e política. Tudo se degradou. Todos os dirigentes e responsáveis políticos perderam autoridade, poder e influência aos olhos da sociedade.

Daí o desencanto da política e do mundo, que significa a perda de esperança no futuro, agravado pela ausência de um princípio absoluto de razão que preside à política e organiza a sociedade eficientemente. Hoje, ao invés, apenas podemos contar com alternativas impostas pela contingência da vida económica, da irracionalidade e imprevisibilidade dos mercados, o que faz com que a política, no dizer de Max Weber, o maior sociólogo da modernidade, signifique um lento abrir furos em duros madeiros com paixão e intuição.


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Collection Roger-Viollet/AFP
Goethe: maestria em todas as formas 


O Aprendiz de Feiticeiro, de Johann Wolfgang von Goethe (tradução de Mônica Rodrigues da Costa; Cosac Naify; 32 páginas; 36 reais) – Ao lado de obras monumentais como o poema dramáticoFausto e o romance Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister, o alemão Goethe (1749-1832) demonstrava maestria também em poemas breves e singelos. Composto a partir de uma lenda popular,O Aprendiz de Feiticeiro é um bom exemplo. A história tornou-se ainda mais célebre quando o camundongo Mickey fez o papel do aprendiz desastrado em Fantasia, desenho animado de 1940. Com belas ilustrações de Nelson Cruz, essa nova edição bilíngüe é um daqueles livros infantis que os adultos também têm prazer em ler.

Leia trecho
"O meu mestre feiticeiro
Um dia quis se ausentar.
Seus espíritos tomei
E fiquei em seu lugar.
Vi suas magias.
Vou fazer igual.
Farei maravilhas
Com força mental!
Água, cresce
E transborda!
Corre, entorna,
Cria bolhas!
Agora esta tina: ferve!
E toda essa água escorra!
Vem, dona Vassoura! Entra.
Enrola-te nestes panos!
Já trabalhaste bastante:
Estou, agora, no comando!
Põe-te de pé,
Cabeça pra cima,
Anda, vá depressa
Pôr água na tina!

Água, cresce
E transborda!
Corre, entorna,
Cria bolhas!
Agora esta tina: ferve!
E toda essa água escorra!"



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