domingo

A anomia portuguesa. Evocação de Emile Durkheim e a luta sem massa, projecto sem finalidade




- Com um milhão (ou mais) de portugueses desempregados, os que não estão passam recibos verdes com a precariedade conhecida;

- Com a hegemonia de algumas corporações que comandam o sentido da marcha legislativa e telecomanda o escol dirigente que na AR faz as leis mais convenientes para servir esses interesses corporativos;
- Com dezenas de milhar de pessoas qualificadas e em idade jovem e activa a emigrar compulsivamente, porque em Portugal só se deparam com falta de oportunidades;
- Ficam, apenas, aquelas classes sociais que já vincularam ao Estado e, por isso, falam hoje de cátedra, mas são incapazes de ir além da mera opinião inconsequente; os grandes empresários sempre imunes às crises, ainda que percam milhões com elas; as classes liberais que já granjearam sucesso na sociedade. 
- Quem verdadeiramente sofre com este tipo de esbulhos fiscais são a classe média e as classes abaixo dela: a média-baixa e a baixa - que apenas tem o suficiente para não morrer à fome.

Ante este quadro social depressivo, que potencial de luta se vislumbra nos portugueses para combater - nas instituições e nas ruas - as medidas fiscais ultra-liberais e neocorporativas de que tem sido objecto no último ano e meio? 

O cenário é, de facto, desolador por razões básicas: os que emigram não estão cá, e os seus amigos e familiares não se mobilizam para o efeito; aqueles que comem certinho à manjedoura do Estado (e falam de barriga cheia para mostrar que integram a classe dos oprimidos espelham a sua própria hipocrisia) - mas nada mais fazem senão debitar um opinanço de sebenta que já enjoa; os empresários de sucesso deslocalizam capitais e têm o mundo na palma das mãos; os grandes escritórios de advogados continuam a facturar milhões por ano com avenças deste e doutros governos (pretéritos e futuros, como sempre foi e será em Portugal); a corrupção política-empresarial-autarquica continuará a dar cartas, ainda que o país conte com uma procuradora-geral adjunta que denegue os factos por mera lógica corporativa e de ambição de carreira.

Estes factos somados levam-nos, inevitavelmente, a uma conclusão: os portugueses estão falhos de objectivos, não têm, de facto, verdadeiros instrumentos de luta contra as injustiças sociais, o que é gerador da perda de identidade, o que provoca, por sua vez, transformações no mundo social português que o descaracterizam ainda mais. 

De notar, conforme estudos recentes, que Portugal poderá perder 1 milhão de pessoas até 2020 em resultado desta recessão, o que é preocupante em todos os níveis... E é este capitalismo de casino (que "mata" a natalidade), ratificado pela Europa de Merkel, de que Passos Coelho é um fiel e obediente discípulo, que ajuda a explicar a ruptura com os valores tradicionais do passado, ligados à sua forma de organização social, económica e à sua concepção religiosa. 

De resto, pergunto-me o que significa hoje ser católico em Portugal? Esta é a anomia que vivemos, para evocar o criador do conceito e o "pai" da Sociologia moderna, Emile Durkheim. 

Com efeito, o paradoxo do nosso tempo é, de facto, bizarro, pois os processos de mudança sociais, o racionalismo, as mutações tecnológicas, a evolução do quadro de mentalidades, tudo isso, deveria potenciar novos valores sociais que permitiria uma ascensão social da generalidade das camadas da população, que viveria melhor do que seus pais e avós, mas parece, em pleno III milénio, registar-se um retrocesso neste capítulo. Um retrocesso mitigado por um sentimento difuso de andar à deriva, agravado por um governo de gente pouco qualificada e recomendável que acaba por induzir ainda mais esse sentimento, apresentando medidas num e noutro sentido, nas mais variadas áreas da governação, que só confunde mais os portugueses. 

Na realidade, não se pode governar com base em mentiras e em testes para detonar reacções sociais para, depois, o Governo reagir em conformidade com essas reacções. O "medo" não pode ser a variável que determina a marcha do governo, ante a sua falta de visão, desígnio e objectivos para Portugal, hoje um miserável protectorado da troika.

No limite, e para retomar a terminologia de Durkheim, até apetece perguntar se os portugueses não se sentem, no plano colectivo, a vivenciar uma espécie de suicídio assistido perante um governo totalmente incapaz e uma troika verdadeiramente controladora e impositiva do que se deve (e não deve) fazer na governação em Portugal. Tudo com a aquiescência do governo, mas com a total oposição do Portugal profundo. 

Esta anomia, ou melhor, esta incapacidade de atingir os objectivos gerais das populações, até por parte dos novos movimentos sociais formados e articulados nas redes sociais, que apenas têm um poder mobilizador e protestaivo, mas que depois não encontra quaisquer consequências institucionais e nas suas vidas concretas, é revelador da disfunção entre o poder político e a sociedade, aumentando o fosso entre governantes e governados, o que tende a gerar uma patologia social que terá, seguramente, diferenciadas consequências em cada um dos indivíduos, que são sempre desiguais entre si. E alguns, como temos tido conhecimento, não sucumbiram ao suicídio que acabou por funcionar como terapia salvífica duma situação económica degradante, que, com Pedro passos Coelho, tenderá a agravar-se. 

Estes factos, e as preocupações a eles associados, geram inevitavelmente um Portugal diferente: mais velho, mais perigoso, mais imprevisível, mais permeável ao risco, mais criminoso, mais desigual, mais injusto, mais auto-destrutivo, enfim, mais violento e permeável aos desvios vários que, na prática, só têm o seu equivalente funcional nos desatinos dum Governo neoliberal e corporativo que viola a Constituição da República Portuguesa, esbulha os mais pobres para deixar os mais ricos na mesma. Tudo para atingir os seus propósitos orçamentais e equilibrar as finanças públicas. E o que vemos do lado da despesa do Estado?!

Esta insensibilidade social gritante é, nos tempos que correm, um acto verdadeiramente criminoso, e alguém terá de responder pelas suas consequências. 



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