segunda-feira

Sub-representação política: as palavras e as coisas

Escolho aqui este quadro de Tarsila do Amaral - "Operários" - 1933 - picado no Acervo Artístico Cultural dos Palácios do Governo do Estado de S. Paulo - e que ilustrou a capa do livro de crónicas de Vitor Cunha Rego, Os Dias de Amanhã, um grande articulista português (e não só) que já partiu. Assim, as palavras que se seguem são também uma justa e simples homenagem a Cunha Rego, a um tema que lhe seria, porventura, caro: o da subrepresentação política, intra e extra-muros. Veremos, pois, se aqui consigo condensar o que pretendo significar com esta breve evocação.
Muitas das palavras do nosso vocabulário não têm hoje tradução visível nos factos que lhes correspondem: "cidade"; apesar de tudo, dá-nos uma imagem do que queremos transmitir, mas nação, Estado, soberania, democracia, representação já não encontram correlação visível através de simples conceitos. Ficando apenas processos mentais abstractos - que ocupam o lugar verdadeiro dos factos que se escondem por trás deles.
Nessa indefenição situam-se outros conceitos, como justiça, legitimidade, legalidade, liberdade, igualdade, direito(s), etc. Já para não falar noutras realidades mais sociais, como desemprego, felicidade, pobreza entre outras realidades ligadas ao mundo económico que tecem as malhas do nosso quotidiano. Assim, verificamos que toda a nossa experiência sensorial é a de raciocinar através de conceitos - que são entidades quase abstractas e remetem-nos para o lugar do inexistente.
Mesmo que o homem moderno tenha desenvolvido um sistema de comunicação que nos permite traduzir realidades através da linguagem (ao invés do homo sapiens) - enquanto construção lógica - que nos abre caminho ao conhecimento científico, esses mesmos conceitos deixam-nos num impasse terrível, já que as imagens para que nos remetem apenas partilham uma realidade infiel e pobre da realidade autentica que visavam partilhar inicialmente.
Alguns exemplos: a ideia de felicidade pode espelhar a face de alguém alegre numa foto, a imagem de liberdade a de alguém a sair da cadeia, a do desemprego a atitude de alguém frustrado e deprimido. Se bem que a ideia de liberdade não se explique através de um sujeito a sair da cadeia, nem a visão do desempregado se confine à ideia de frustração e assim por diante. Ou seja, entre o conceito e a realidade que aquele visa explicitar não existe perfeita correlação ou sintonia.
A coisa avoluma a sua gravidade quando falamos de líderes europeus, como Merkel, Sarkosy e outros actores - em que o valor das suas palavras pouco ou nada significa, ou melhor, por vezes até é contraditória nos seus termos. Nisto Passos Coelho é exímio: antes de privar com a Srª Merkel era pró-eurobonds como forma de financiar a dívida dos Estados, depois de privar com ela inverteu a sua posição só para não desagradar ao "homem" que manda na Europa e que hoje financia boa parte da assistência financeira a Portugal.
Ou seja, coabitamos hoje entre conceitos que nos remetem para imagens vazias, sem sentido. Por isso não conseguimos explicar o que sente o detido a sair da prisão, o pobre a escapar à pobreza, e, no plano europeu - que hoje determina o que se passa no interior das nações, em que consistem as palavras balofas de Durão Barroso quando enche a boca com a defesa dos eurobonds - cuja proposta esbarra com a manifesta oposição de Merkel - que decide praticamente tudo no plano financeiro e económico.
Tudo isto é revelador de que os conceitos de que hoje dispomos no vocabulário necessário à nossa comunicação não tem sentido, não é consequente, logo aquilo que vemos e ouvimos por parte dos líderes europeus e dos dirigentes nacionais, à nossa pequena escala e dimensão, não basta para produzir ideias geradoras de conceitos emergentes que possam enquadrar e explicar uma nova realidade.
Creio que é por vivermos todos hoje essa grande atrofia mental e política que o Velho Continente vai empobrecer (está a empobrecer), conduzindo também a um fenómeno de linguagem mais pobre. Não apenas no seu número de palavras utilizadas, mas sobretudo na riqueza dos correlatos significados.
Estes fenómenos todos relacionados entre si espelham uma péssima imagem da democracia que engendrámos neste 1º quartel do séc. XXI, em que as comunidades estão cada vez pior representadas nas instâncias de decisão que comandam o destino de todos nós.

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