quinta-feira

Cultura cilindrada pelo entertainment

A justa nobilização de Mario Vargas Losa coloca-nos diante uma reflexão segundo a qual a cultura é, hoje, esmagada pelo entretenimento. As redes sociais, onde pontifica o famoso Facebook, é um desses paradigmas negativos (ou invertidos) que mostram como as coisas funcionam. Também não é por acaso que o dispositivo se designa "Face-book", e não thinking ou reflection-book, seja como for seria expectável que naquele antro de imagens narcísicas as pessoas comungassem algumas ideias, teorias, problemáticas do nosso tempo, e é pena que só uma ínfima minoria o faça. Este lamentável retrato não é só típico do FB, mas apanágio doutras redes sociais - que promovem, perversamente, uma cultura, um gosto de massa cujo resultado só pode culminar naquele tal esmagamento da cultura pelo entretenimento. Dado que essas redes difundem em larga escala um empobrecimento duma certa ideia parcelar de cultura, promovendo a sua desnaturação antecipando o declínio da cultura mais clássica. Esta inversão de valores que coloca a face sobre o book, ou seja, subordina a reflexão à aparência, desvaloriza a essência das coisas ante a sua futilidade, ocorre porque o que o homem hoje busca é o tal entertainment e os artigos fornecidos pelas chamadas indústrias culturais que passaram a ser consumidos por todos nós como produtos de massas, como a luz, a água, o gás. O reflexo imediato disto, um pouco como diz Vargas Losa quando afirma que o seu modelo de literatura está hoje pouco na moda, porque ele sempre associou a Literatura a uma forma superior de empenhamento cívico, é que são as massas a propagar a cultura, facilitando a tal destruição da verdadeira cultura ante o peso esmagador do entretenimento. De resto, esta é uma ideia da filósofa Hannah Arendt, quando afirmou que a sociedade de massas não deseja a cultura, mas o entretenimento. Daqui decorre o espírito do tempo que vivemos, duma certa crise de valores que pulula na política e na sociedade, cuja decadência se estende às instituições sociopolíticas que deveriam regular as sociedades contemporâneas, e não regulam coisa nenhuma. Nesta senda, o prémio Nóbel atribuído a Mario Vargas Losa talvez possa inverter esta alienação que hoje percorre o mundo inteiro, e que urge ser inflectida. Mesmo que nessa luta os media, em particular os audiovisuais e multimédia das indústrias culturais, não ajudem nessa reposição do valor da cultura verdadeira (porque ele é anti-comercial!!!), que é aquele que, afinal, nos permite compreender os processos pelos quais os fenómenos acontecem duma maneira e não de outra. Ou seja, pede-se menos quantidade e mais qualidade, menos mercadoria e mais espiritualidade - que induz, necessáriamente à reflexão que depois permite dar à luz trabalhos com melhor qualidade nos diferentes domínios da expressão artística, de que a literatura é apenas uma forma de expressão. Mas até que nos consigamos libertar dessa alienação, dessa cultura da imagem, do fácil, do fútil, do aparente e do instantâneo, da máscara torna-se necessário compreender o narciso que há em nós. Talvez nisso o recurso a Dalí e a Freud ajudem, de forma a percebermos que a verdadeira cultura emerge quando largamos o nosso próprio umbigo, o narciso que habita em cada um de nós, o nosso próprio ensimesmamento e passemos, verdadeiramente, a olhar o outro. Enquanto o homem contemporâneo não mandar às malvas o seu próprio umbigo, de que as redes sociais são hoje, por grosso, um sub-produto, ele jamais compreenderá o que significa a palavra cultura ou o que significam as suas variadas formas de manifestação. Como diria alguém, confundiremos sempre cultura com alta-costura na paranóia do nosso tempo.
  • Notas dedicadas a Agostinho da Silva, na esquina da memória.
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Nicolaj Grandjean - Heros and Saints

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