Triunfo dos Porcos, hoje? Evocação do excepcional escritor e filósofo, George Orwell no Ano de 2010 – de combate à pobreza
Em função das condições de vida em que hoje vivem milhões de pessoas por essa nossa “querida” Europa (que estamos [des]contruindo), julgo legítimo interrogar as elites decisoras, as instituições directoras e as demais classes dirigentes da Europa se a célebre metáfora do Triunfo dos Porcos, uma obra de George Orwell que espelha uma história com animais que não é mais do que uma metáfora da vida, encontra nos factos, nos anseios e nas expectativas desses milhões de pessoas, verdadeira razão de ser. Tanto mais que o ano de 2010 é o ano escolhido para, simbolicamente, ser o tempo do combate à pobreza. Em Portugal decorrem precisamente hoje várias iniciativas de Norte a Sul do país - oriundas da sociedade civil com vista a reflectir sobre esse flagelo e de encontrar para ele propostas, soluções e, quiçá, sugestões para as entidades governamentais – e outras (oriundas do chamado 3º Sector, designado “Não lucrativo” – expressão cara a Peter Drucker) – que directa ou indirectamente têm responsabilidade de direcção na gestão dos recursos e das estratégias que podem minorar as baixas condições de existência dos milhões de pobres que, em Portugal, já vivem abaixo do limiar da pobreza. Cerca de 20 pessoas em cada 100 já se encontra nesse patamar infra-humano de profunda dependência de terceiros para assegurar as suas condições básicas de sobrevivência.
O que é dramático, senão mesmo trágico, especialmente se atendermos à ideia de que hoje todos vivemos numa economia hiper-desenvolvida, pós-industrial em que as capacidades tecnológicas, de produção e de distribuição são francamente superiores ao número de bocas existentes no planeta para alimentar. O tempo da carroça e da junta de bois que outrora garantia uma economia de subsistência, já lá vai.
Mas, de facto, esta nossa dependência extrema, em certos casos, como se confirma pelas ruas da cidade de Lisboa que melhor conheço, representam um verdadeiro soco no estômago e remetem-nos para a filosofia que esteve na base do Triunfo dos Porcos de Orwell, em que se conta a história de um grupo de animais de quinta que se revoltam com sucesso contra o seu cruel dono, apenas por serem escravizados por ele, é aí que um porco mais líder, ou seja, mais político, se afirma e avança o lema de que todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros. Enfim, a frase é conhecida e tem levado muitos filósofos sociais a reflectirem sobre a equação que nos dias de hoje ainda não perdeu actualidade, a avaliar pela pobreza congénita em Portugal e amiúde por toda a Europa, que outrora foi a plataforma do mundo mais rica, mais tecnológica e mais desenvolvida, a ponto de se lhe ter chamado Euromundo, que hoje é uma sombra do que foi.
Devemos dizer que o livro remonta ao tempo da IIGM e foi, de facto, uma sátira à então URSS, pois Orweel sabia melhor do que ninguém o que significava verdadeiramente o comunismo, dentro e fora das fronteiras naturais do ex-império, como se veio a provar depois aquando do balanço de cerca de 80 anos de comunismo em toda a Europa central e de leste que, consabidamente, culminou com a Queda do Muro de Berlim em 1989 e as consequentes “revoluções de veludo” para que a Isabel, no outro dia, me chamara a atenção. De certo modo, foi um regresso à Junqueira e à década de 90 do séc. passado que também foi outro milénio. Especialmente, tratando-se duma fábula intemporal – baseada na revolução dos bichos – e no carácter alegórico com que o escritor conseguiu fazer corresponder os factos que hoje aqueles milhões de pobres na Europa (e no mundo) vivem e as representações desenvolvidas nesse romance alegórico a que vale a pena regressar. Logo hoje, pela comemoração de acções de combate à pobreza no país, ainda que amanhã já ninguém se lembre das acções simbólicas de véspera, com excepção dos pobres. Os quais, diga-se em abono da verdade, pouco ou nada fazem para sair desse círculo vicioso em que cairam.
Lamento que aquilo que serviu de base para dirigir um ataque intelectual à então URSS, e à ditadura comunista imposta por Stalin, pois foi essa a intenção de George Orwell, e por isso tenha sido reconhecido como um dos melhores romances do séc. XX, seja hoje um retrato da Europa: com os seus milhões de pobres, de desempregados, de indigentes, de marginais que toda essa situação de dependência extrema acaba por gerar no miolo das sociedades europeias, tornando-as mais inseguras, politicamente mais instáveis, mais demagógicas e populistas e também mais caras e mais restritivas.
Sabemos também que o livro descreve situações de corrupção e traição a figuras de animais para, assim, melhor caracterizar as fraquezas da condição humana, e que hoje já não se circunscreve à sociedade comunista da então URSS conduzida por José Stalin. Neste contexto de revolta que a Europa política criou sobre a Europa social, atrevo-me a conjecturar que pode estar em curso nas ditas sociedades europeias uma revolta invisível, composta pelos tais "porcos-líderes" que se revoltam contra os humanos liderados pelos vários Snowball, ou seja, pelos Bola-de-Neve que, de aldeia em aldeia, de cidade em cidade, de região em reião poderão vir a protagonizar amanhã uma verdadeira revolução social com efectivo impacto político, no sentido de restaurar uma ordem social e económica que julgam justa, e que hoje a Europa política miserável que temos não oferece. Quadros qualificados portugueses têm que emigrar, milhares de quadros licenciados em Portugal são hoje caixas em supermercados, e muitas outras situações desajustadas revelam como o país organizou mal a sua economia e afectação de recursos intelectuais e técnicos, para fazer a economia do país andar para a frente e ser mais produtiva e competitiva.
Confesso que não sei se já chegou a “hora” (e se ela existirá?!) de os velhos porcos, os líderes, reunirem os animais da fazenda a fim de realizar o sonho perdido, que é serem governados por eles próprios em regime de auto-governo, já sem a submissão e a exploração do homem. E a esse propósito houve que inventar toda uma narrativa, composta de canções, que enaltecesse a filosofia do “Animalismo” para melhor exaltar a igualdade entre eles que, curiosamente, contrastam com as condições de vida das pessoas que na Europa hoje procuram desenvolver um projecto de vida. Mas os velhos porcos, os velhos líderes também morrem, uns de morte natural, outros de morte induzida pelos jovens porcos “bolas-de-neve” que reuniam clandestinamente para afinar as estratégias da revolução. Ora, em Portugal, passe a analogia, aquilo que é mais visível, sobretudo no partido do governo, é ver um sonolento Tó Zé Seguro a criticar as medidas de austeridade do PM que ele sempre combateu na direcção do PS, mas que, em rigor, irá morrer à praia. Ninguém o levará a sério.
O que prova como em Portugal não há verdadeiras fileiras de elites políticas que funcionem como elos alternativos imediatos aos velhos políticos, daí também a dificuldade de mudar. Esta asserção é também válida para o PSD e demais partidos do espectro político em Portugal, veja-se a dificuldade que foi substituir Ferreira leite, o maior dano à vida do PSD, pelo actual PPCoelho, ou ainda o drama que seria substituir Paulo Portas no CDS ou Jerónimo de Sousa na liderança do PCP. Ou seja, as estruturas partidárias em Portugal são demasiado rígidas para permitir tal flexibilidade, e assim não entra sangue novo novo, não se renovam as ideias e os projectos políticos em Portugal. Daí a extrema dificuldade de lançar as bases para a feitura da "tal" revolução entre nós, não obstante os descontentes dos bichos que, de certo modo, somos muitos de nós.
Confesso desconhecer o fluir das dinâmicas da história, sobretudo em Portugal, mas não me repugna pensar que haverá sempre quem queira alterar os “mandamentos colados na porta do celeiro” que hoje, governo e oposições, têm para oferecer aos portugueses e que, consabidamente, é escasso e não nos levará a grande destino.
De pouco nos adianta afirmar que queremos dormir de lençóis de cetim, ou beber bebidas caras ou manifestar outros desejos consumistas, porque os impostos subiram e a tendência é para refrear o consumo imposto pela carestia de vida.
Metaforicamente, estas são as condições em que vivemos, em que alguma opulência convive com a extrema pobreza, o contraste, só por si, já nos deve fazer reflectir nesta nossa quinta dos animais em que todos vivemos. Ainda que saibamos que inúmeros desses porcos trabalham arduamente em troca de rações miseráveis, que espelham bem as condições económicas em que a generalidade do povo português ainda vive, e que reflecte bem o carácter grotesco não apenas da sociedade portuguesa, no "aqui e agora" deste nosso circunstancialismo, mas no carácter grotesco da própria sociedade humana de que somos parte integrante.
Comemora-se o ano de combate à pobreza, talvez não seja má ideia desperdiçarmos esta oportunidade para repensar na genialidade e na valia intelectual da obra de George Orwell, que também nos deu o 1984, e de equacionarmos em conjunto medidas e propostas de solução que possam vir a frutificar no futuro e deixar uma marca, por pequena que seja, de combate efectivo a essa quase-fatalidade que empurra muitos homens e mulheres do nosso tempo para a valeta da vida.
Talvez o lema não deva ser mais tributário da ideia de que os animais são iguais, mas há sempre uns mais iguais do que outros, mas observar uma ideia mais rica e fecunda de que um homem só deve olhar o outro de cima para baixo se for para o puxar para cima…
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