terça-feira

Uma república com um rei

A História tem destas coisas: conseguimos explicar muitas coisas, mas prever poucas. Embora muitas pessoas intuissem a queda da Monarquia para a data em que ocorreu, ou antes, tudo por um conjunto de razões. A saber: 1) Portugal sempre fora muito influenciado pelos ideais e valores da Revolução Francesa de 1789 que, de par com a Revolução Norte-Americana anos antes, representou o motor da história do séc. XVIII, XIX e XX. Desde logo, porque Portugal já vivia, pelo menos desde a revolução de 1820, com os germens do Estado republicano - que esfrangalhou o clero parasitário e deu cabo da aristocracia falida; 2) depois o rei e a monarquia no seu conjunto, representavam um antro de corrupção, venalidade e de gestão ruinosa da coisa pública - que contrastava com a pobreza, analfabetismo, ruralidade e subdesenvolvimento geral do país - que mais não era do que um conjunto de aldeias e de cidades mal ligadas entre si por comunicações quase inexistentes. O povo mais esclarecido, enquadrado organicamente, odiava a monarquia e o monarca que fora incapaz de colocar Portugal na rota do crescimento, da modernidade e do desenvolvimento no quadro do concerto Europeu em que se inseria, até pelo processo de colonização e de expansão africana que trilhámos, na senda da gesta dos Descobrimentos e cujo ciclo só findou com a retirada do império em 1974 e a revolução de Abril - que fundou a Democracia no mesmo ano. A esta luz, a monarquia era o inimigo nº 1 a abater, até para poupar o erário público de mais despesismo real e sumptuário. Já então, o nosso mal radicava no controlo das finanças públicas..., leia-se, no despesismo da máquina do Estado, tal como como hoje!!!
A dada altura, especialmente após 1910, data da instauração da República (cujo centenário se comemora), os liberais - que deixaram os republicanos derrubar a monarquia com a esperança de que iriam continuar a governar o estado [já] sem o rei (gordo e corrupto que tornava Portugal num sítio pouco recomendado e sem estatuto internacional), acabaram varridos do poder, o que deu à instauração da República a ideia de que a história, por vezes, é uma caixinha de pandora.
Os liberais recolheram às suas quintas e empregos, passaram a ser apenas uma classe social, e não a velha classe política que tinham sido de véspera. Perderam todo o seu status em favor dos republicanos. Mas, na realidade, aquilo que a queda da monarquia - ante a emergência da república - revelou foi a institucionalização do Estado de direito, o carácter representativo do Estado e da sociedade, pelo menos formalmente, que ditava que os cidadãos, doravante passassem a ser iguais em direitos, i.é, iguais entre si - já sem a aquela distinção de classes que impedia a mobilidade e ascenção social que subjazia ao valores monárquicos e, de certo modo, à concepção de direito divino que sustentava essa forma do Estado e de organização da sociedade (absolutista e miguelista que os liberais, através de D. Pedro - sempre combateram).
A república trouxe o império da lei, formalmente, é claro, e o excepcional valor da Educação para todas as classes sociais. Por outro lado, como se multiplicaram os actores políticos, seja individualmente, seja em número de partidos - o rei passou (logo no início do séc. XX) - que ainda arbitrava o sistema e ajudava o PM a arranjar maiorias parlamentares para se aguentar no poder, a ter grande dificuldade em escolher o PM, dado que as suas escolhas - precisamente pelo elevado número de actores políticos a operar no sistema - passaram a ser não só mais difíceis e problemáticas, como também mais contestadas pelos actores que ficavam de fora das preferências do rei.
Certamente, esta contestação foi agravada pela circunstância de a monarquia constitucional ser governada por uma classe política demasiado virada à esquerda, composta pelos chamados "liberais". E como sabemos, as esquerdas nunca foram muito adeptas das lealdades dinásticas, daí que a monarquia passasse a ser como uma instituição e um valor cada vez mais marginal e descartável.
Por outro lado, ainda seria possível remediar a decadência do rei D. Manuel depositando no filho, D. Manuel II, uma esperança, uma escapatória para toda aquela decadência e gestão ruinosa do Estado, mas o sucessor era hesitante e impreparado, ninguém confiava naquele reizinho - em quem todos atacavam publicamente.
Deste modo, chegou-se ao séc. XX com uma certeza para a aquela degradação política e constitucional: a deposição do rei e a substituição da monarquia, ainda que nessa fase os portugueses ficassem mais pobres, comprometendo Portugal a sua posição nas colónias - na sequência do Ultimatum inglês de 1890 - que também serviu - no tabuleiro externo - para que Portugal ficasse mais vulnerável na luta pela manutenção do seu império - que havia sido construído através de muitas campanhas militares no seio do projecto monárquico, agora em falência.
Portanto, os males do país eram simples de identificar: residiam nos maus governos, os quais eram, por sua vez, resultado das preferências do rei que os escolhia na lógica do árbitro do sistema. Consequentemente, e identificado o mal, o remédio para essa cura passava pela própria erradicação do rei.
De resto, era isso que desejava toda a classe política, ou boa parte dela, especialmente após a vulnerabilidade externa - com reflexos domésticos - em que Portugal ficara na sequência do ultimatum britânico - cujo projecto de expansão africano do Cairo ao Cabo conflituava com o nosso projecto político africano de unir a costa à contra-costa, ou seja, de ligar Angola a Moçambique.
Foi aqui que o rei D. Manuel revelou toda a sua pequenez e incapacidade política e diplomática de dar a volta à situação, mostrando que a monarquia deixara de ser uma mais-valia para o país e para os seus projectos ultramarinos, pelo que não importava defender D. Manuel. O qual foi vítima dum regicído, de que, em rigor, também não nos devemos orgulhar, sobretudo quando esse crime foi cometido na sombra tutelar da república emergente. Foi, pois, um mau começo para a república se afirmar.
Talvez não seja marginal afirmar, sobretudo hoje que se comemora o centenário da República, e com o devido respeito aos nossos idealistas e monárquicos, que também fazem falta ao regime, que o princípio monárquico há muito que não correspondia de facto a uma verdadeira cultura de fidelidade dinástica, muito menos ao rei D. Manuel, que tinha mais defeitos do que virtudes.
Razão por que Portugal era, como ao tempo se dizia, "uma república com um rei", por isso quando veio a república, em 1910, muitos entenderam que se tratou da consequência lógica do estado liberal que já vinha de trás, e que talvez tenha começado em 1833.
Mas nem tudo foi um mar de rosas nestes cem anos de república, como à partida se poderia pensar, já que a nossa república é, hoje, um regime muito imperfeito gerador de inúmeras injustiças e desigualdades entre as pessoas, razão por que vale a pena pensá-lo e repensá-lo e de encontrar para ele as respostas e os aperfeiçoamentos ajustados aos novos tempos.
Veremos, a esse respeito, o que Belém e S. Bento, assim como os partidos políticos e o conjunto das instituições da sociedade civil - têm para dizer ao país-real, nestas vésperas de apresentação e discussão do OE para 2011, com cem anos de vigência da república.
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