Cheque em branco - por António Vitorino -
Já se percebeu que o processo de revisão constitucional começou mal. Com efeito, a escolha unilateral pelo PSD do momento da entrega do primeiro projecto de revisão determina a abertura do prazo de trinta dias para que todos os demais deputados formulem as suas propostas. Os ditames da "marcação da agenda" prevaleceram sobre as considerações atinentes à criação de um ambiente propício ao diálogo e à concertação de posições. dn
As dificuldades de calendário normalmente são ultrapassadas… com o decurso do tempo. Mas as salvas de tiro iniciais fazem antever um período alargado de crispação, fazendo jus ao ditado de que o que nasce torto…
A simultaneidade de um processo de revisão constitucional com as eleições presidenciais é indesejável, e isso, o PSD sabia-o bem desde o início. O facto de entrementes ter retirado do seu horizonte de propostas as alterações dos equilíbrios institucionais, designadamente as referentes aos poderes presidenciais, demonstra-no bem!
Não se tratou apenas de evitar uma previsível rota de colisão com o Presidente actual cuja recandidatura o PSD está destinado a apoiar nos termos precisos em que o Prof. Cavaco Silva bem quiser.
Tratou-se também de "emendar a mão" de um conjunto de propostas de alteração do sistema político que manifestamente careciam de um fio condutor, de uma ideia directora que representasse uma resposta efectiva aos problemas institucionais da nossa democracia. Ao mesmo título se pode interpretar o desaparecimento das chamadas "listas aparentadas", que figuravam nas propostas iniciais, sobre as quais o PSD guardou sempre um grande silêncio, mas que se podia considerar tudo menos inocente do ponto de vista do funcionamento do nosso sistema partidário.
Agora há que aguardar as propostas dos demais partidos para perceber o que poderemos esperar desta revisão constitucional. Sabendo-se, como se sabe, que as intenções do PS, partido indispensável aos dois terços necessários para aprovação das emendas à Lei Fundamental, são minimalistas, o quadro da negociação não parece assim ser muito alargado.
Antes de entrar na análise das propostas de alteração já avançadas, convém deixar duas ou três reflexões de enquadramento.
A primeira é a de que não se pode dizer que os problemas do País tenham na Constituição nem a sua fonte principal nem obstáculos à sua resolução. Provavelmente tudo seria mais fácil se bastasse "apenas" alterar a Constituição…
A segunda tem a ver com o que é uma Constituição, com o desiderato histórico desta nossa Lei Fundamental em concreto. Com efeito, a Constituição exprime uma ideia de um contrato político e social, sendo o instrumento de preservação dos direitos das minorias. Esta natureza contratual da Lei Fundamental funda-se na necessidade de maiorias alargadas para a sua alteração. Não se trata, pois, de uma decisão constitucional de maiorias circunstanciais, mas de um acordo mais amplo e, por isso, em princípio, mais duradouro.
Logo, importa que em relação a cada proposta de alteração se pondere bem que bases desse contrato se pretendem alterar, em nome de que valores e para sacrifício de que outros valores. Sendo certo que a Constituição não deve conter programas de governo, também não podemos ignorar que a Constituição impõe limites que não ficam na livre disposição do poder político em cada momento. E que esse perímetro de protecção constitucional existe em nome e por força de um consenso alargado.
Assim, a Constituição não permite o lock-out, mesmo que seja legítimo que haja partidos que o preconizam. Tal como prevê que não pode haver expropriações sem justa indemnização, por muito que alguns partidos se sintam limitados por tal restrição.
Logo, alterar a Constituição em nome de que todos os programas de governo devem ser consentidos corresponde a uma alteração profunda da natureza do regime político português. Donde resulta que quando se pretende desconstitucionalizar as regras sobre a segurança no emprego ou sobre as condições de acesso à saúde e à educação, importa que se explicite bem em nome de que valores e de que interesses é que essas propostas são formuladas, bem como quais os resultados que se pretendem alcançar.
Caso contrário, pretende-se apenas transformar a Constituição num cheque em branco. Obs: Chegado ao poder no PSD PPCoelho ficou confrontado com a eleição duma bandeira - a sua - para (re)fundar uma nova narrativa de captura do poder no país, dado que já tinha deposto a líder cessante (Ferreira leite), como se sabe o maior dano que ocorreu ao psd em termos de liderança no pós-25 de Abril. E a bandeira que Coelho escolheu, à falta de melhor, foi, dramáticamente, a da revisão constitucional, embora não se compreenda a sua oportunidade nem a sua racionalidade política. Portanto, tudo alí foi mau, bem como mau foram os resultados que passou a ter nas sondagens de opinião que acusou automáticamente essa má escolha de que o país real dispensa nesta conjuntura social e económica altamente problemática. É como se o país precisasse de mais e de melhor investimento, e PPCoelho servisse aos portugueses uma bandeja repleta de normais constitucionais que, ainda por cima, lhes limita o acesso à educação, saúde, etc. E, naturalmente, mais privatizações desses serviços que, na prática, iriam agravar as condições de acesso a esses serviços do Estado social por parte dos portugueses que, bem ou mal, este governo lá vai sustentando, apesar da enorme taxa de desemprego e da retoma da economia ser lenta e de se avizinhar um ano de 2011 ainda mais problemático. Talvez não se vislumbre mais nenhuma outra finalidade na ideia de PPC com esta pseudo-revisão constitucional do que dissolver o seu preâmbulo, onde se refere a meta do socialismo na sociedade portuguesa. Se assim for, e porque a CRP não deve ser o armazém dos programas de governo nem o seu suporte ideológico - faça-se a vontade ao líder do psd que, doravante, ficou refém do governo em matéria de negociação do OE para 2011. Isso, sim, um tema importante para Portugal!
Etiquetas: António Vitorino, Pedro Passos Coelho e a sua revisão constitucional
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