quinta-feira

Urgência duma Nova Política e dum Novo Jornalismo

Urgência duma Nova Política e dum Novo Jornalismo
Ontem o jornalista Bernardo Ferrão, da SIC, saltou para a arena por causa duma frase que disse e que, de certo modo, terá enfraquecido a política de comunicação do actual PM, Sócrates. Este queria falar do Portugal-tecnológico, e o jornalista pretendia obter dele comentários acerca dos valores do défice, muito preocupantes por sinal. É óbvio que entre uma agenda política e uma agenda do jornalista há um fosso como, de resto, existe em quase tudo quanto diga respeito a esses dois mundos (política e jornalismo), salvo quando operam em regime de complementaridade e os interesses funcionalmente são convergentes.
Será isto normal, desejável? Ou seja, numa conferência, num evento, numa qualquer outra sessão pública ao que é que os agentes políticos se deverão subordinar: à sua agenda política exclusiva, ou à agenda dos jornalistas que perguntam?
Parece-me que se a pergunta em apreço envolve a conjuntura social e económica do país que comprime a condições de vida das famílias, das empresas e dos cidadãos os agentes políticos não se devem furtar a esses esclarecimentos. Logo, os agentes do poder devem, na medida das suas possibilidades, responder da forma mais realista e esclarecedora possível; porém, se a questão do jornalista for completamente despropositada, ou até mesmo provocatória, deverá ser ignorada, assim como será descredibilizado o jornalista que a faz publicamente. Creio, pois, que a pergunta do jornalista da SIC, Bernardo Ferrão deveria ter sido respondida, na medida em que comportava um eminente interesse público. Foi pena.
Paralelamente, todos sabemos que o mundo actual, sobretudo quando a política anda muito mediatizada e o jornalismo há muito se politizou, a política e o jornalismo apresentam duas faces: as faces de Jano. Revelando, um e outro, conotações com a direita, com a esquerda e com o centro. Ninguém aqui é neutral, evidentemente!!! Assim sendo, o chamado cidadão-médio terá grande dificuldade em perceber a bondade das perguntas de alguns jornalistas, bem como a omissão por parte dos agentes do poder em funções em face de algumas questões.
Uns e outros mentem, manipulam, instrumentalizam, omitem, exageram, dramatizam, fazem fretes, pois tudo integra a rede circular de informação que perpassa pelo circuito entre pessoas e instituições que têm em comum a submissão às coacções dos níveis de audiência (para os jornalistas), e aos níveis de simpatia e apoio dos eleitorados (os políticos). Aqueles querem potenciar a sua quota de audiência nas estações de TV onde trabalham, estes desejam garantir quotas de apoio social a fim assegurar a sua reeleição nas próximas eleições.
Cavaco, por exemplo, sob a capa de ser um político-não-político, ou seja, um tenocrata, acaba por ser um expert neste tipo de navegação no fio da navalha: promulga a lei dos gays, sendo um conservador e um católico, e dá um murro na mesa aquando da lei que regula o Estatuto dos Açores, e comporta-se miseravelmente em matéria da inventona das escutas de S. Bento a Belém, na expectativa de que por via desse expediente assassinasse política e publicamente o PM e, assim, ajudaria a sua amiga Ferreira leite a ganhar as eleições legislativas. Portanto, sejamos sérios, aqui não há gente inocente e todos os players têm, marcadamente, interesses (políticos, económicos, empresariais e pessoais) a defender e a racionalizar no espaço político que ocupam.
Creio que o melhor caminho é o trilho do meio, ou seja, nem os agentes políticos devem ser casmurros ao ponto de apenas falarem acerca daquilo que estudaram ou desejam falar, por uma questão de marketing político; nem os jornalistas, que também estão ao serviço duma empresa que tem interesses económicos poderosos, devem permitir-se colocar as questões mais deslocadas, o que não foi o caso com o jornalista em apreço.
As sociedades democráticas são, afinal, muito pouco transparentes: o poder só fala daquilo que quer, como e quando quer; os sindicatos convertem o que lhes resta em energia corporativa; os jornalistas são uma tribo ainda pior do que a dos advogados ou médicos - pois não têm apenas a mania que são deuses, julgam-se mesmo deuses que nunca falham; e os políticos, no poto da pirâmide cumulam todos esses defeitos que depois vertem para o funcionamento do sistema político, bloqueando-o.
No fundo, e aproveitando aqui o paralelo entre dois dos principais actores das sociedades pós-modernas - o político e o jornalista - ambos metamorfoseiam-se na busca da sua própria opacidade: tanto podemos supor que o PM não quis falar dos valores do défice porque, como referiu o jornalista Bernardo Serrão, ele não havia decorado as fichas para debitar, como pensar que Serrão dramatizou e racionalizou o valor da sua questão porque ela permitiria um pico de Pub. criativa e corajosa junto da sua estação de televisão e do mercado mediático nacional que o tornaria a vedeta do dia, e é da junção da representação da omissão do PM (ao não querer falar do défice) e do excesso de role-playing do jornalista que identificamos os tais fenómenos de desenvolvimento acelerado da sociedade invisível que tem vindo a aumentar dramáticamente a sua opacidade.
Aquilo a que assistimos hoje é essa violência simbólica, com a TV (que reserva escasso tempo para o pensamento) a desempenhar esse papel proeminente, cabendo aos jornalistas colocarem questões de tal modo racionais, objectivas e pertinentes que sejam reveladoras de coisas escondidas; e aos políticos, por seu turno, caberá o papel de não seguirem apenas o seu guião da manhã, mas o de, a cada momento, apresentarem uma visão, um projecto, uma solução para cada um dos problemas que afectam - colectiva e individualmente - todos os portugueses.
Se ambos desempenharem competentemente as respectivas funções, veremos que essa violência simbólica será minimizada e o quadro das relações sociais, e em particular o das relações de comunicação integrada nos circuitos do poder, será mais fluida e transparente, e com sorte até (algumas) perguntas dos jornalistas melhor preparados passarão a ajudar os políticos a encontrar as soluções indicadas para os problemas da nossa economia.
Enquanto isso não ocorrer, não nos devemos chocar pelo peso dos factos, e se o défice público é preocupante não devemos recorrer à semântica política ou à lógica racionalizada das omissões, até porque haverá sempre alguém mais sagaz que o PM ou que o jornalista de serviço, que mesmo antes de um e outro abrirem a boca (ou de a fecharem!!), consegue antever a “caldeirada” que uma tal conferência de imprensa vai gerar nesta nossa mui pequena polis que ainda não entendeu que contra os factos as opiniões pouco ou nada valem.
Na verdade, este affectio societatis subverte e intensifica, a seu modo, a desestruturação da sociedade conduzindo ao enfraquecimento dos actores sociais e políticos (mais) clássicos, degradando ainda mais a democracia, o rule of law e até a própria competitividade no seio do espaço público e da arena política por onde devem ser expostas, discutidas e tomadas as decisões da polis.
O que não deixa de ser uma dupla lição - de jornalismo e de política - que les uns et les autres parece ainda não terem interiorizado nesta "cabra cega" da política à portuguesa.
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Prefab Sprout - We Let The Stars Go

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