quinta-feira

Ferrão no flanco de Sócrates

I. Ontem, Bernardo Ferrão, da SIC, fez a reportagem que devia ser um modelo a seguir nas escolas de jornalismo. Enquanto José Sócrates queria fazer a sua propaganda do costume, Ferrão fez a pergunta que meio Portugal queria fazer: "mas eu quero falar do Portugal real, e não do Portugal tecnológico". O primeiro-ministro fez a sua cara n.º 34 (aquela que diz "como se atreve a colocar-me perguntas? Como se atreve a não seguir as indicações da minha agência de comunicação?"), mas Ferrão insistiu: "mas a dívida bateu recordes históricos". Como não tinha decorado as fichas sobre a dívida, Sócrates respondeu o seguinte: "temos tempo para falar sobre a dívida". Temos?
II. Meus amigos, com três ou quatro "Bernardos Ferrões", os "Sócrates" desta terra nunca conseguiriam criar o mundinho virtual onde estamos enviados. Os jornalistas de TV que fazem o dia-a-dia dos políticos não podem ser gatinhos dóceis, a ronronar e a roçar as perninhas nos ditos políticos. Pelo contrário: têm de ser bulldogs sem misericórdia, isto é, têm de morder. Estes repórteres são a primeira linha de intermediação entre o poder e o público. Se não assumirem uma posição de combate, se não assumirem uma atitude de fiscalização do poder, esses repórteres tornam-se cúmplices dos políticos e das suas agências de comunicação. Jornalismo agressivo devia ser um pleonasmo. O jornalismo só pode ser agressivo. O Bernardo Ferrão é a excepção por cá, mas é a norma nos sítios civilizados, esses sítios sem o culto do "respeitinho".
III. Num mundo televisivo completamente adormecido (por norma, as reportagens não têm sentido crítico e vida própria), Bernardo Ferrão é uma pedrada no charco. As suas peças valem um telejornal. Mas, claro, não faltará por aí quem considere Ferrão "mal-educado". São os adeptos da "liberdade respeitosa", uma coisa praticada por Salazar e por Sócrates , mas que só foi teorizada pelo segundo.

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