Alternância - por António Vitorino -
Esta semana, a Rainha Isabel II leu o "discurso do trono", que constitui, no sistema britânico, uma espécie de divulgação do programa do novo Governo formado entre conservadores e liberais-democratas.dn
A cerimónia tem sempre uma estética muito curiosa: à pompa e circunstância do ritual repetido ao longo dos tempos corresponde um discurso elaborado pelo Governo onde se abordam os temas da actualidade mais premente (desde a crise financeira à ameaça das armas de destruição maciça). A Rainha Isabel II desempenha este seu papel institucional há várias décadas, não se sabendo, claro está, o que pensará em cada momento daquilo que lê.
Só que desta feita a Rainha leu um "discurso do trono" fruto de uma situação rara na política britânica: um governo de coligação!
Naquilo que actualmente mais conta, o combate à crise económica e o saneamento das contas públicas britânicas, a Rainha leu um discurso onde se conclui que os dois parceiros da coligação acabaram por ter de fazer cedências mútuas, traduzidas curiosamente na queda das mais emblemáticas medidas preconizadas por cada um dos partidos durante a campanha eleitoral… Não haverá a prometida redução de impostos dos conservadores nem os lib-dem terão os cortes que preconizavam nas despesas militares. Se fosse em Portugal, a imprensa toda e os comentadores estariam já a clamar pelas promessas não cumpridas!
A verdade, contudo, é que este tipo de acordo de governo e coligação, raro no Reino Unido, corresponde a uma situação típica de uma "alternância incompleta".
A alternância no exercício do poder está na essência dos regimes democráticos. No caso do Reino Unido, o sistema eleitoral maioritário a uma volta é um catalisador dessa alternância concebido para propiciar maiorias de um só partido alternativas, de modo a que a alternância se processe sem sacrifício da estabilidade governativa.
A alternância alimenta-se, no plano da substância das escolhas dos eleitores, de dois elementos essenciais: o cansaço ou descontentamento perante quem exerceu o poder no ciclo antecedente e a convicção de quem pode alternar no poder a seguir fará diferente e desejavelmente melhor!
Em períodos de normalidade política e económica, o primeiro factor pode ser bastante para que a alternância se processe. É o que muitos designam de "apanhar o poder quando ele cai de maduro". Para tanto basta estar no lugar certo e… saber esperar! É isso que explica porque é que até cerca de dois meses antes da eleição os conservadores tinham uma vantagem de mais de dois dígitos sobre os trabalhistas, no poder há 12 anos…
Contudo, em períodos de crise económica, o segundo factor mostra-se decisivo. Ora, foi neste aspecto que manifestamente os conservadores não lograram persuadir os eleitores de que fariam diferente e melhor, não tendo, por isso, beneficiado plenamente do potencial de alternância conferido pelo sistema eleitoral britânico. Exemplo que deve servir de fonte de meditação para outros países também…
E se é um mérito da liderança dos dois partidos agora coligados terem dado provas de pragmatismo e maturidade democrática na negociação dos grandes objectivos do programa económico de emergência da nova coligação, resta saber se esse acordo tão atípico na democracia britânica vai ser também alcançado na definição dos detalhes da sua implementação.
Já no plano da política europeia, o acordo de coligação inspira mais reservas. Sabia-se, desde sempre, que este seria o tema mais espinhoso para um acordo entre os conservadores (onde prolifera uma facção militantemente eurocéptica) e os liberais-democratas, que sempre fizeram gala em definirem-se como o mais europeísta dos partidos britânicos (tendo frequentemente criticado o Labour e Tony Blair, em especial pelas suas hesitações em matéria europeia). Por isso, o acordo a que chegaram é mais uma lista daquilo que não farão em matéria europeia do que propriamente uma linha de conduta que potencie o peso e o papel do Reino Unido no contexto da União! Com uma excepção: ambos estão firmemente de acordo que a sede do Parlamento Europeu deve mudar de Estrasburgo para Bruxelas! Quem diria, logo para Bruxelas!?
Obs: Alguém está a ver Sua Alteza Real, D. Duarte de Bragança, com aquela voz de octogenário, e reinvestido da sua desejada Monarquia constitucional, a empossar o bloco central em Portugal com a crise como pano de fundo!? Ora, uma das razões pelas quais a monarquia caíu no arranque do séc. XX foi, precisamente, o cansaço e a incompetência da desgovernação e a corrupção que então grassavam em Portugal que desorganizava o equilíbrio das finanças públicas e tornava insustentável a gestão política normal do país. Contudo, não deixa de ser curioso notar que enquanto esta matéria é publicada, dando conta do governo de coligação entre Conservadores e Liberais-democratas no RU, o PSD de PPCoelho - segundo a mais recente sondagem ao PSD, segundo barómetro de Maio, está perto da maioria absoluta, dando conta do desgaste da governação do PS. Com regime republicano ou regime de monarquia constitucional, Portugal terá que se reencontrar consigo próprio, e isso passará, a prazo, talvez por algo semelhante que a Rainha Isabel II fez recentemente ao empossar aquele governo de coligação.
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