sexta-feira

Racionalização da Negociação das Tolerâncias

Eu digo bem de ti para tu dizeres bem de mim. É isto que hoje apodrece os alicerces da sociedade portuguesa. E o mais grave é que este procedimento hobbesiano está enraizado em todos os sectores da sociedade nacional.
Este é, porventura, um dos maiores cancros da democracia portuguesa que condiciona o funcionamento do sistema democrático e das instituições sociais, económicas e judiciais em Portugal. E o mais curioso é que os vícios que identificamos no quadro das relações politico-institucionais são comuns aos defeitos e às patologias que dinamizam o quadro das relações da esfera privada.
Esse câncer tem nome e está disperso na sociedade portuguesa como uma rede de metástases que importa reter, sob pena de apodrecimento geral das nossas instituições neste processo de minagem global da sociedade portuguesa.
E em que consiste esse processo? Reside, precisamente, num síndrome de ignorância, laxismo e passividade ao nível dos comportamentos e atitudes que tornam reféns os dirigentes das nossas instituições: de ensino e de educação (do politécnico à universidade), à vida judicial, às empresas de comunicação social, ao empresariado e, claro, à própria esfera e coração da vida política.
- Não raro assistimos aos políticos invocar a sua ignorância para justificar a sua passividade ou a sua tolerância perante comportamentos ou políticas que não são viáveis, apenas pronunciando-se sobre eles após os media terem valorado ou comentado esses temas.
- Não raro assistimos, no meio académico, os pares elogiarem-se mutuamente quando, na verdade, sabemos que aqueles elogios não são merecidos nem o seu trabalho comporta qualidade. São apenas manifestações da praxe corporativa mais salazarenta que a democracia já não deveria tolerar, mais que não fosse para cuidado da nossa higiéne mental.
Infelizmente, este tipo de elogios salazarengos ocorre corporativamente na sociedade, e toca as instituições de ensino, as instituições judiciais e o conjunto da vida pública nacional. Este excesso de tolerância tem, contudo, um grande defeito e desvantagem, o de impedir que todos aqueles responsáveis – que julgam ir no bom sentido liderando as respectivas instituições – corrijam esses desequilíbrios assim que eles começam a manifestar-se. Seja nas instituições de ensino, no meio judicial, ao nível dos órgãos de comunicação social ou no âmbito das instituições mais políticas.
É, pois, a essa perniciosa cumplicidade que aqui designamos de negociação das tolerâncias, cujo processo permite a que uns responsáveis finjam ignorar aquilo que serve de moeda de troca com outros responsáveis sociais – que também adoptam o mesmo procedimento, ou seja, fingem ignorar os verdadeiros dados do problema, e assim se vai tecendo uma extensa e perigosa teia de cumplicidades – que cruza quase todos os sectores da sociedade portuguesa – que funciona como acordos tácitos que neutralizam ou anulam a verdadeira eficácia das medidas políticas propostas pelos governantes. É também por essa razão que hoje a política pouca eficácia tem junto da sociedade, em particular junto de certos sectores de tipo mais corporativo que nunca estão dispostos a ceder os seus privilégios em prol do interesse geral.
E ao cessar a clássica eficácia das instituições políticas, também cessa a possibilidade de a sociedade no seu conjunto corrigir esses desequilíbrios, já que essa passou a ser uma tarefa relegada para segundo plano e subordina à tal teia de cumplicidades manhosas gerada não apenas entre os diversos actores políticos, mas entre eles e a globalidade dos representantes das entidades e instituições sociais que compõem o tecido conjuntivo da sociedade portuguesa.
É a este caldo de cultura comportamental decadente mais ou menos apodrecido entre nós que responde pelo nome de negociação de tolerâncias, um conceito que não estando no índice dos manuais de Ciência Política faz, lamentavelmente, carreira nos circuitos da decisão nas nossas belas instituições. O que explica bem o estádio de subdesenvolvimento cultural em que nos encontramos.