quinta-feira

O empurrão para o abismo neo-liberal

Artigos: Filipe Zau e Benjamim Formigo O empurrão para o abismo neo-liberal
05 de Março, 2010
A presidência do Banco Mundial teve o indiano Amartya Sen como um dos seus membros, galardoado em 1998 Prémio Nobel de Economia. No seu livro “Desenvolvimento com Liberdade”, ele manifestou a sua discordância com a política seguida pelo Banco Mundial, uma agência internacional de apoio ao desenvolvimento que apresenta como lema “O nosso sonho: um mundo sem pobreza”. De acordo com Amartya Sen, “o poder de fazer o bem quase sempre anda junto com a possibilidade de fazer o oposto. Como economista profissional, houve no passado ocasiões em que me perguntei se o Banco não poderia ter feito muito mais”.
O americano Joseph Stiglitz, professor de Economia e ex-vice-presidente do Banco Mundial, Prémio Nobel de Economia em 2001, referiu, na sua obra “A Grande Desilusão”, que os EUA foram uma colónia que chegou à independência de armas na mão. Daí que, inicialmente, a sua postura em relação a outros países colonizados fosse moderada e humana. Todavia, ao aceder ao posto de principal potência económica mundial, colocaram-se, imediatamente, ao lado das ex-potências coloniais.
Louis Emmerij, em 1992, presidente do Centro de Desenvolvimento da OCDE, frisa, no seu livro “A Granada Descavilhada”, a propósito da dívida externa dos países em desenvolvimento, que os chamados “ajustes estruturais” impostos, na década de 80, aos países pobres, fizeram com que o número de matrículas diminuísse na escola primária em 22 países, quando, em era do conhecimento, a Educação é a trave-mestra para o crescimento económico e desenvolvimento sustentado das comunidades. Com uma dívida externa igual ao triplo do valor das suas exportações anuais, gasta-se, em África, mais para o pagamento da referida dívida do que para a educação e a saúde juntas.
Só “entre 1986 e 1993 as políticas do FMI levantaram quatro mil milhões de dólares da economia africana” e, em 1999, de acordo com o relatório de 2000 do próprio Banco Mundial, estimava-se que a dívida pública africana chegasse aos 235 milhões de dólares. O serviço anual da dívida neste período correspondia a 17 mil milhões de dólares, 3,8 por cento do PIB da grande maioria dos países africanos ou 16 por cento das suas exportações anuais e mais de 35 por cento das suas despesas em Educação.
Independentemente da crise económica que hoje é vivida a nível planetário, as metas da Cimeira do Milénio, realizada em Nova Iorque (2000) e os objectivos das Conferências de Educação para Todos, levadas a cabo em Jomtien (1990) e Dakar (2000), põem à prova a actual conjuntura neoliberal, caracterizada pelo alargamento do fosso entre os países industrializados e os países em desenvolvimento e por acentuadas desigualdades no seio das próprias sociedades.
De acordo com o Relatório de Desenvolvimento Humano de 2002, publicado pelo PNUD, dos seis mil milhões de habitantes existentes, 2,8 mil milhões (quase metade) viviam com menos de dois dólares/dia e 1,2 mil milhões (um quinto) com menos de um dólar/dia. Nos países mais ricos, menos de uma em 100 crianças não completava os cinco anos. Nos países em desenvolvimento, um quinto das crianças morria antes de atingir essa mesma idade. Enquanto nos países industrializados menos de cinco por cento de todas as crianças, com menos de cinco anos, eram desnutridas; nos países pobres a proporção chegava a 50 por cento(metade das crianças). A comparação de rendimentos individuais levada a cabo pelo PNUD concluiu, que um por cento das pessoas mais ricas do mundo recebia o mesmo rendimento que 37 por cento das mais pobres. O rendimento dos cinco por cento mais ricos do mundo era 114 vezes superior ao dos cinco por cento mais pobres. Os 10 por cento dos habitantes mais ricos dos EUA tinham um rendimento igual ao dos 43 por cento mais pobres do Mundo, ou seja, 25 milhões de norte-americanos tinham um rendimento igual a dois mil milhões de pessoas. Com a actual crise mundial, com o resultado de uma série de catástrofes naturais e outras provocadas por conflitos armados um pouco por todo o mundo, pergunta-se: o que mudou nestas estatísticas para melhor e para pior, tendo em conta a necessidade de se criar um mundo socialmente mais justo e mais solidário?
Amin Maalouf, antigo chefe de redacção da revista Jeune Afrique, afirma no seu livro “Um mundo sem regras” – do qual foram vendidos mais de 84 mil exemplares só em Portugal –, que “vituperar contra a riqueza material, culpabilizar aqueles que se esforçam para aumentá-la, é uma atitude estéril que serviu constantemente de pretexto às piores demagogias. Mas fazer do dinheiro o critério de toda a respeitabilidade, a base de todo o poder, de toda a hierarquia, acaba por esfarrapar o tecido social”. Acrescenta ainda que “se temos de sair das legitimidades antigas, que seja ‘para cima’, não para ‘baixo’, que seja para a elaboração de uma escala de valores que nos permita gerir melhor do que fizemos até agora, a nossa diversidade, o nosso ambiente, os nossos recursos, os nossos conhecimentos, os nossos instrumentos, o nosso poder, os nossos equilíbrios, por outras palavras, a nossa vida comum e a nossa capacidade de sobrevivência – não para a rejeição de todas as escalas de valores”.
O santuário da globalização
À medida que a globalização se apoderou do pensamento multiplicam-se nas ruas em atitudes violentas as manifestações contra as regras neoliberais que ameaçam tornar a política obsoleta. Escrevi esta mesma frase numa crónica para o “Diário Económico”, de Portugal, em 2001. Hoje perante a impotência de controlar a crise financeira começa a falar-se em governação económica. No mundo desenvolvido, pouco habituado às elevadas taxas de desemprego e com uma classe média cada vez mais empobrecida a contestação do sistema é crescente.
As manifestações de protesto, normalmente violentas, que acompanham as cimeiras onde o modelo neoliberal continua a ser rei, mesmo depois dos desastres financeiros recentes e da prolongada crise que não tem fim à vista, devem começar a ser encaradas não como uma atitude de arruaceiros mas como uma profunda insatisfação social.
Essa insatisfação social não só não é respondida de forma consequente como é acompanhada, dada a falta de dinheiro das famílias, por uma dramática redução no consumo. Essa redução terá reflexos no mundo em desenvolvimento, nas tais economias emergentes que vivem das exportações para o Primeiro Mundo. Em paralelo, a falta de meios, a quebra de receitas do Estado por via do desemprego, e por esta mesma via o aumento das despesas dos Estados, reduzem a já magra fatia dedicada ao apoio ao Terceiro Mundo.
A economia Mundial é controlada por 200 empresas e algumas estão integradas no mesmo grupo económico, com os mesmos accionistas maioritários. É o polvo que, no chamado Primeiro Mundo, começou a controlar os políticos e... quem paga, manda.
Na última década e meia os políticos demitiram-se ou foram demitidos do seu papel de representantes dos eleitores em favor dos interesses económicos dominados mundialmente por essas duas centenas de empresas. A bolsa tornou-se o santuário da globalização, concentrando empresas e aumentando insustentavelmente o poder de cada uma. Os trabalhadores tornaram-se peças descartáveis em função das necessidades de valorização de cotações. Transaccionam-se volumes inimagináveis de dinheiro em operações que reflectem interesses de casas financeiras e não o valor real de uma empresa.
Depois de durante décadas as empresas terem rosto e assumirem um papel social, o neoliberalismo e os seus seguidores destituíram a iniciativa privada de qualquer outro objectivo que não seja ganhar dinheiro a curto prazo. O principal capital das empresas, o “know-how” dos seus trabalhadores foi preterido em favor dos que estão dispostos a passar por cima de tudo para a obtenção de um lucro imediato, mesmo que a situação económica se torne insustentável a prazo.
Claro que esta situação que se vive nos países desenvolvidos tem os seus reflexos nos países em desenvolvimento. Os economistas, agora controladores da politica – não se sabe por quanto tempo, até que alguém grite que o rei vai nu – encontraram a figura das economias emergentes para designar os grandes mercados para onde podem exportar ou de onde podem importar matérias-primas a baixo custo. Em qualquer dos casos procurando discriminar os países em desenvolvimento e criar uma brecha, como se verifica com o Brasil e Índia, a lutarem por uma liderança que não merecem, e a China a transformar em valores sólidos os seus fundos e a procurar o estatuto de superpotência.
Com o desenvolvimento das comunicações e da Internet poder-se-ia dizer que a informação é uma riqueza global. Todavia, a Internet é um bem essencialmente urbano de uma elite que além do conhecimento informático e linguístico dispõe dos meios financeiros para as horas de navegação devidas aos ISP’s ou às empresas telefónicas.
O tradicional papel social da empresa, instituído depois da Segunda Guerra Mundial, foi substituído iniludivelmente pelo interesse dos accionistas, melhor dos grandes accionistas. O “downsizing” que se segue a fusões ou a resultados menos favoráveis é uma regra para manter ou fazer subir cotações.
Se antes havia um emprego para a vida e hoje existem vários empregos durante uma vida, a verdade é que já se esboça a tendência para várias profissões durante uma existência humana.
A cidadania mundial, tão falada, é uma realidade virtual. Não pode existir se não tiver por base a cidadania nacional, que nada tem a ver com os nacionalismos. A cidadania nacional não existe se os cidadãos que elegem um Parlamento e um Governo os considerarem impotentes perante regras globais, ditadas por organismos que não elegeu. A revolta é inevitável.
Os recursos naturais são depredados. A população mundial cresce e as novas tecnologias, reservadas aos desenvolvidos, não conseguem substituir os empregos que extinguem. Os sindicatos promovem a sua própria obsolescência na luta vertical conta uma ameaça horizontal. Surgem por isso, embora timidamente, os primeiros movimentos horizontais de desempregados que não se sentem defendidos ou representados pelos sindicatos nem pelos políticos. A própria génese da democracia está em causa. É a noite do pensamento único.
Obs: Divulgue-se e medite-se no valor destas obras e das análises que sobre elas se fizeram.