segunda-feira

Mário Soares homenageia o historiador Vitorino Magalhães Godinho

UMA SIMPLES HOMENAGEM por Mário Soares
O professor Vitorino Magalhães Godinho, que celebrou há dias o seu nonagésimo aniversário, em plena lucidez, foi - e é - um professor excepcional da Universidade Portuguesa. Digo-o com conhecimento de causa. Conheci-o em 1942, quando entrei para a Faculdade de Letras, Secção de Histórico-Filosóficas da Universidade de Lisboa e ele era jovem assistente de História Antiga, salvo erro, tendo já uma grande reputação como professor e historiador. Fui seu aluno no último curso que regeu então, porque no ano seguinte o seu contrato foi rescindido, por não merecer a confiança política do Ministério.
Esse facto - que nos revoltou a todos - fez com que organizássemos um protesto, que foi o primeiro movimento cívico-político em que participei. Tinha então dezassete anos. O protesto, como era natural, não teve consequências práticas. A não ser terem os seus alunos decidido organizar-se e quotizar-se para lhe pagarem as aulas, que continuaram, fora da Faculdade. Salvo erro, numa sala do Ateneu Comercial, às portas de Santo Antão, perto do velho Coliseu. Fiquei desde então amigo de Magalhães Godinho, apesar do seu temperamento difícil e um tanto distante. Mais do que isso: discípulo, para a vida inteira. Foi a ele que pedi para prefaciar o meu primeiro livro "As ideias políticas e sociais de Teófilo Braga", tese de licenciatura para a Faculdade de Letras, aliás muito mal acolhida pelo meu arguente, Professor Délio Santos, recém convertido ao Estado Novo e deputado à Assembleia Nacional. Um prefácio excelente, que excede em muito o pequeno valor conjuntural do livro e que sempre recordo. Fiquei-lhe a dever um amigo patrocínio extremamente solidário, que não esqueço e que tenho recordado sempre pela vida fora.
O professor Magalhães Godinho, é sem qualquer favor, um grande historiador, dedicando-se sobretudo a estudar a Economia das Descobertas e os temas ligados à expansão portuguesa no Mundo, na linha dos grandes historiadores Jaime Cortesão, Duarte Leite e de um dos seus discípulos Joaquim Barradas de Carvalho, meu saudoso amigo. Entre vários outros. Magalhães Godinho é também um homem de grande cultura universalista, sabe de tudo, e de arreigadas convicções político-ideológicas. É de uma rara competência profissional e de invulgar verticalidade moral. Colaborou na Seara Nova, desde jovem, imbuído do "espírito crítico e racionalista seareiro", filho de uma família de ilustres republicanos, antigos ministros da I República, como seu Pai, o coronel Vitorino Godinho (do qual há pouco tempo publicou uma notável biografia) e do eminente professor de Direito, também antigo ministro, Barbosa de Magalhães, seu tio materno. Teve como irmão mais velho um dos advogados, mais considerados de Lisboa, um dos fundadores do Movimento de Unidade Democrática (MUD), José Magalhães Godinho, conspirador inveterado, antifascista, membro da Comissão Executiva do MUNAF, foi também um dos fundadores da União Socialista (como, aliás o Vitorino) que se extinguiu nos anos cinquenta, para dar origem, mais tarde, ao actual PS, de que foi igualmente fundador e proeminente militante. Vitorino Magalhães Godinho impossibilitado de ser professor na Faculdade de Letras foi para Paris, voluntariamente, onde esteve como investigador e bolseiro no Centre National de la Recherche Scientifique (1947-1960), próximo da equipa dos Annales e de historiadores como: Lucien Febvre, Fernand Braudel e Ernest Labrousse, de 2 quem foi amigo, tendo-se doutorado - Lettres pela Faculdade de Letras da Universidade de Paris, em 1959. Entre 1960-1962 regressou a Lisboa como professor catedrático do Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, tendo voltado a França à Faculté de Lettres et Sciences Humaines da Universidade de Clermont Ferrand (1970-74). Voltei a encontrá-lo, nessa altura, e a conviver um pouco com ele, quando estava no exílio em Paris. Encorajou-me, aliás, a preparar uma tese de doutoramento para a Sorbonne, sobre os exilados republicanos portugueses em Paris, patrocinada pelo professor Albert Silbert, seu amigo e meu, cujo trabalho foi interrompido pelo 25 de Abril e o meu regresso a Portugal. Vitorino Godinho regressou também a Portugal, sempre igual a si próprio.
Depois da Revolução dos Cravos, foi Ministro da Educação e Cultura no II Governo Provisório, presidido pelo General Vasco Gonçalves. Era em plena fase do PREC. As dificuldades políticas - e as contradições - eram muitas e todos estávamos empenhados no desfecho da confrontação que se estabeleceu entre socialistas e comunistas. Não era o momento de fazer grandes reformas na educação e na cultura, como Vitorino Godinho desejava. Poucos meses depois, demitiu-se, por falta de apoio. Mas criou-nos um problema: com a sua demissão - de que tentei demovê-lo - e a consequente substituição por um militar, perdemos a escassa maioria de que até então dispunhamos no Conselho de Ministros... Depois da normalização democrática, que se seguiu ao 25 de Novembro, votada a Constituição de 1976, com a única excepção dos deputados do CDS, eleito Ramalho Eanes presidente da República, nomeou-me, primeiro ministro, por ser o líder do Partido mais votado. Foi o primeiro Governo Constitucional. Seguiram-se outros, de várias procedências, como é natural em Democracia. Em 1983 voltei a formar Governo, por o PS ter ganho de novo as eleições. Nesse Governo Constitucional - o meu terceiro - tive como ministro da Cultura o historiador e crítico literário, António Coimbra Martins, também do grupo dos estrangeirados, por ter sido leitor em várias Universidades estrangeiras e Director do Instituto da Gulbenkian, em Paris. Foi ele que me sugeriu o nome de Vitorino Magalhães Godinho para Director da Biblioteca Nacional, o que aconteceu em 1984. Fui eu próprio a dar-lhe posse, pela profunda admiração, apreço e amizade que sempre por ele tive e pela sua Família. Recordo, em especial, e com saudade a sua falecida Esposa, pelo enorme respeito que por ela sempre tive.
Vitorino Godinho não esteve muito tempo na Direcção da Biblioteca. Nunca quis compreender, julgo, os complexos mecanismos do funcionalismo público. Voltou, e muito bem, às suas investigações históricas - de enorme rigor e sabedoria - tendo publicado também ensaios críticos sobre Portugal, a "Pátria bloqueada e a responsabilidade da cidadania", por exemplo, como tinha feito antes, com "O Socialismo e o futuro da Península", em 1970. E regressou ao ensino, na Universidade Nova de Lisboa. Magalhães Godinho foi sempre um cidadão exemplar. Um homem probo, de uma inteireza de carácter excepcional e de uma honestidade moral e intelectual invulgar. Tem uma obra que o classifica entre os maiores historiadores portugueses. A par de um Herculano, de um Oliveira Martins, de um Damião Peres, de um Paulo Merêa, ou de um Jaime Cortesão. Na juventude dos seus noventa anos, não pára de trabalhar. Tem ainda muito para fazer, como sempre, ao serviço de Portugal.
Lisboa, 12 de Junho de 2008

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