Crise e governabilidade - por Mário Soares -
Todos os meus leitores sabem que, por natureza, não sou pessimista. Antes pelo contrário. Mas procuro ser realista. Sinto junto das pessoas com que contacto, de todas as condições sociais, do litoral e do interior, que há uma grande incerteza - e mesmo preocupação - quanto ao nosso futuro colectivo. Não estamos ainda perante uma crise de regime, como alguns profetizam, mas para lá caminhamos, se a sociedade civil e, especialmente, os partidos - do Governo e da oposição - não forem capazes de criar um mínimo de concertação para podermos mudar as coisas. Obviamente, com o concurso activo dos parceiros sociais - sindicatos e associações patronais - numa perspectiva dos interesses próprios, mas também, para bem deles, do interesse nacional.
Quando me refiro aos partidos políticos estou a pensar, naturalmente, nos que têm assento na Assembleia da República - da esquerda e da direita - sem excluir o PS, que não deve limitar-se a apoiar o Governo - cela va sans dire -, mas a ter vida própria, autónoma e a debater internamente, e com os outros partidos e associações cívicas, os grandes problemas que nos afligem. Sem um PS mobilizado pela discussão livre e o debate interno, dando voz e ouvindo os militantes, que têm sugestões a dar ou críticas a fazer, o Governo, nas condições actuais, dificilmente aguenta até ao fim da legislatura. Mas com o partido activo e mobilizado será diferente.
O Governo tem pouco mais de um mês de existência e, significativamente, está a ser já atacado, com violência, pelos partidos da esquerda e da direita, dir-se-ia concertadamente. Para os dois partidos da esquerda radical - PCP e Bloco de Esquerda - em competição, entre si, é (parece-me) um perigo que estão a correr, a médio prazo, dada a crise com que se debate o País e as preocupações das pessoas, mulheres e homens, que mais a sentem na carne. O eleitorado está farto de guerrilhas partidárias - depois de três eleições sucessivas - e agora o que quer é que lhe resolvam os problemas fundamentais: o desemprego, a pobreza, as questões da saúde, as pensões sociais, o ensino público, a segurança contra a criminalidade, a justiça atempada, a agricultura, sobretudo, para os pequenos e médios agricultores, crédito para que as pequenas e médias empresas se possam aguentar, casa para os que a não têm ou a perderam, integração dos imigrantes e, obviamente, ordem e transparência nas contas públicas e nos bancos afectados pela crise…
Ora, em momento de crise, na situação em que se encontram as nossas finanças públicas, o Governo não dispõe de uma vara de condão para resolver, de um momento para o outro, todos os problemas que nos afligem. As pessoas têm consciência disso e sabem que é preciso dar tempo ao tempo. Dos partidos e parceiros sociais, que estão na oposição e devem fazê-la - é a sua função - espera--se que a façam, mas com sentido de responsabilidade e permitindo que o Governo - apesar de não ter maioria absoluta - governe, porque para isso o eleitorado votou, em eleições livres e genuínas… Se o não fizerem, sofrem, como a recente sondagem da Marktest, de alguma maneira, parece apontar.
O Governo está a ser atacado por ter cão e por não ter: antes, por fazer reformas impopulares e agora, lamentam os que o criticam, por estar a ceder e a deixá-las cair… Partidos, políticos, sindicatos e associações patronais exigem, algumas vezes, o impossível - como se não houvesse crise - sejam: os deputados da oposição, os professores, os agricultores e terratenientes ou os sindicalistas, especialmente os do Ministério Público e os juízes que, em vez de se limitarem a defender os interesses corporativos dos seus associados - que é a sua função - não se dispensam de intervir na política, opinando sobre as instituições e até sobre os processos em "segredo de justiça". Daí, também, o descrédito da justiça que hoje parece ser tão grave ou maior do que o dos partidos e dos órgãos de soberania…
A banalização da comunicação social que quase só divulga crimes, intrigas políticas ou político-económicas, escândalos ou pseudo-escândalos, incluindo as "fugas" ao chamado "segredo de justiça" - que assim se tornam verdadeiros segredos de Polichinelo - desgraças e mais desgraças e os eventos mais negativos, convencidos, a meu ver, sem razão, de que assim as televisões e as rádios alargam as audiências e os jornais têm mais leitores. Não é assim. A verdade é que põem na prateleira os jornalistas mais isentos e rigorosos, contribuindo também - e muito - para fomentar o ambiente deletério que está a contaminar a sociedade portuguesa, a que acima aludi.
A governabilidade está a tornar-se muito difícil. É preciso muita coragem para aceitar hoje ser ministro ou líder partidário, porque sabem que o mínimo que lhes pode acontecer é verem as suas vidas devassadas, e muitas vezes deturpadas as suas próprias palavras, para já não falar dos enganos ou de meras gafes, que são sempre explorados à saciedade. Para não falar do primeiro-ministro, porque esse é o bombo da festa, ao qual tudo pode acontecer… Até que se farte. Já pensaram: e depois?
Os partidos, os políticos em geral, os sindicalistas e quem exerça funções públicas - todos - devem lutar, na minha modesta opinião, contra este clima derrotista que tem vindo a instalar-se, que afecta uns hoje e amanhã outros. Devem lutar pela dignificação das funções que exercem - no Governo e nas oposições - pela honradez no serviço público e no nosso Estado de direito. Se não for assim estarão, certamente sem o quererem, a pôr em causa os fundamentos do nosso regime democrático, o melhor e o mais importante que a Revolução dos Cravos nos trouxe.
2. Uma revolução mal conhecida. Passou, na semana passada, quase despercebida, a data histórica do 25 de Novembro de 1975, que foi uma revolução (não uma contra-revolução, como alguns pretenderam) que restituiu o 25 de Abril de 1974 à sua pureza inicial: democratização, descolonização, desenvolvimento. Foi o fim de uma fase de delírio pseudo-revolucionário, o chamado PREC, que ameaçou conduzir Portugal à bancarrota e que nos levou próximo - hoje isso é incontestável - da "guerra civil". Mais uma vez, evitou-se o derramamento de sangue e, contadas as espingardas, o Presidente Costa Gomes, com a sua excepcional argúcia - e apesar da sua conhecida ambiguidade - próximo das duas da manhã, na madrugada de 26, conseguiu convencer Álvaro Cunhal a dar ordem de desistência. A extrema-esquerda persistiu, mas foi, facilmente vencida, com dois mortos no Quartel da Política Militar da Ajuda, seguramente inocentes.
Durante o dia 25 fui para o Porto, com alguns camaradas, por estradas secundárias, onde nos apresentámos, como previsto, no Quartel-General do Norte, ao general Pires Veloso, designado, depois, vice-rei do Norte, e ao general Lemos Ferreira que, entretanto, tinha levado os aviões da Força Aérea para Cortegaça, próximo do Porto. Callaghan, então ministro dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido, mandou, a pedido do PS, um petroleiro para próximo de Leixões, fora das nossas águas territoriais, para abastecer os aviões em caso de necessidade.
O grupo do PS na RTP, a que pertencia Soares Louro, conseguiu cortar a emissão de Lisboa, ocupada por Duran Clemente, que apelava, desajustadamente, à vitória do poder popular, até, subitamente, ser substituído, nos ecrãs, do País inteiro, por um filme de Danny Kaye…
Nas semanas que precederam a aventura dos pára-quedistas, que prenderam em Monsanto o chefe do Estado-Maior da Força Aérea e tomaram alguns quartéis, afirmou-se, já com a ideia da revolução, "quem avançar primeiro, perde", como se confirmou. Antes, houve vários acidentes pitorescos e originais, como a greve do Governo Pinheiro de Azevedo, o cerco da Assembleia da República e do Palácio do Governo, e o confronto na televisão, que fez parar o País, entre Álvaro Cunhal e eu próprio.
Dois grupos, um militar e outro civil, conspiraram activamente, em conjunto, para fazer triunfar a democracia pluralista, a única internacionalmente viável em tempo da chamada détente, entre americanos e russos. Foi o chamado "grupo dos nove" - cujo teórico, no plano político, foi Melo Antunes, há dias homenageado na Gulbenkian, muito justamente, dez anos depois do seu falecimento - e o PS, sobretudo, através das manifestações colossais que organizou de norte a sul do País. Entre os militares, no campo operacional, distinguiram-se: Vasco Lourenço, Jaime Neves, Ramalho Eanes, Vítor Alves, Vítor Crespo, Garcia dos Santos, Gomes Mota e Sousa e Castro. Sem esquecer Otelo, cuja "neutralidade" foi preciosa, em Lisboa. No Porto, os generais Pires Veloso e Lemos Ferreira dirigiam as operações, dispostos a tudo.
Quase todos escreveram livros sobre a conspiração e os acontecimentos do 25 de Novembro, que constituem testemunhos preciosos, embora nem sempre totalmente coincidentes. É natural. Pesou também - no plano psicológico e militar - o regresso das tropas portuguesas estacionadas em Angola, após a independência, comandadas pelo general Almendra.
O 25 de Novembro foi uma revolução, finalmente, pacífica e generosa, porque não houve represálias, como alguns desejariam. Abriu caminho à consolidação da democracia pluralista, civilista e europeia, que chegou a estar em grande risco, entre 11 de Março e 25 de Novembro. Não fomos uma Cuba europeia. Por isso, a data deve ser celebrada e não esquecida. E os seus responsáveis militares, dignificados e louvados como democratas que, no bom espírito republicano, arriscaram tudo, sem pedir nada em troca. Por patriotismo e amor a Portugal. Não deixemos apagar a memória.
3. Um livro muito interessante. Refiro-me ao livro, em curso de publicação, de que é autor o jornalista Pedro Jorge Castro, editado pela Quetzal e intitulado Salazar e os Milionários. Trata-se da compilação da correspondência e das relações secretas entre Salazar e as famílias mais ricas de Portugal. Da leitura do livro resulta um melhor entendimento da verdadeira natureza ditatorial e plutocrática do antigo regime e para perceber com mais clareza Salazar e como vivia na sua intimidade.
Recebi-o há dias - uma oferta generosa do meu amigo dr. Oliveira Dias, de Leiria - e ainda não tive tempo para o ler todo, de uma ponta à outra. Limitei-me a lê-lo em diagonal. Vou agora fazer uma leitura atenta, porque é um livro muito interessante, isento e estimulante, extremamente bem documentado, e que não se lê: devora-se! Sobretudo, para alguém, como eu, que viveu toda a ditadura e mantém uma curiosidade desperta por esse período, para mim, tão sombrio e prolongado. O livro tem quatro partes: I Salazar e o dinheiro; II Salazar e Ricardo Espírito Santo; III Salazar e os outros milionários: Alfredo da Silva, Melos, António Champalimaud, Cupertino de Miranda, Queiroz Pereira, Manuel Bullosa, Medeiros e Almeida, Delfim Ferreira, Moniz da Maia, Miguel Quina, Família Fino, Duque de Palmela, ou seja: a fina flor económico-financeira do salazarismo; e a IV Parte Salazar e os grandes negócios. Cito os temas de que trata o livro, com muitas notas, uma extensa bibliografia e ainda um índice onomástico. Acho que é quanto basta para despertar a curiosidade dos leitores e, simultaneamente, para felicitar vivamente o seu autor.
Obs: Uma reflexão oportuna, lúcida e realista de Mário Soares - que também revela cultura política, além de encerrar uma tremenda preocupação acerca da governabilidade de Portugal, que é muito diversa da que cavaco tinha quando, em 1985, governava com maioria relativa e após uma moção de censura do PRD na AR - que fez cair o Governo - o actual PR "foi buscar" uma maioria absoluta com que governou o país durante uma década com os fundos comunitários da então C.E.E, em regime de "vacas gordas", evidentemente!!!
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