sexta-feira

O julgamento do século - por António Vitorino -

As críticas mais ferozes a esta opção vieram, naturalmente, do campo republicano.

Talvez o título seja pretensioso, mas a decisão da Administração Obama de levar a julgamento, perante um tribunal comum de Nova Iorque, os acusados da autoria moral e de cumplicidade nos atentados de 11 de Setembro de 2001 constitui, decerto, um marco maior da justiça mundial perante a ameaça terrorista.

Convém recordar que a anterior Administração americana havia criado comissões militares especiais para o julgamento dos acusados de terrorismo, entre os quais estavam os que foram detidos como mandantes, autores morais ou cúmplices dos suicidas que projectaram dois aviões sobre as Torres Gémeas de Nova Iorque, sobre o Pentágono, em Washington, e que desviaram o avião que se despenhou na Pensilvânia.

Esta decisão foi muito controversa, na medida em que criava um foro especial para aqueles julgamentos, subtraindo-os às regras gerais do direito penal e processual penal americanos, designadamente no que concerne a observância dos direitos de defesa dos arguidos. Mais tarde, o Supremo Tribunal viria a considerar que tais comissões especiais careciam de uma decisão do Congresso para se poderem ter por legítimas, pelo que ainda na Administração Bush foi redefinida a base legal da existência de tais comissões e a sua própria composição, embora sem alterar significativamente o seu modo de funcionamento. Esta segunda via continuou a ser severamente criticada por muitas vozes no campo dos democratas e por parte das organizações dos direitos civis nos EUA.

O tema constituiu um dos aspectos mais embaraçosos na campanha eleitoral para o candidato republicano, embaraço que foi habilmente aproveitado pela candidatura de Obama. Este, logo nos primeiros dias na Casa Branca, anunciou o encerramento do campo de Guantánamo e uma revisão dos processos e das bases de funcionamento das aludidas comissões especiais.

O anúncio feito esta semana segundo o qual o julgamento dos mais visíveis dos implicados nos atentados do 11 de Setembro seria feito num tribunal comum de Nova Iorque foi, por isso, recebido com júbilo pelos sectores que mais se haviam oposto à estratégia da "guerra contra o terrorismo" do Presidente George W. Bush. As críticas mais ferozes a esta opção vieram, naturalmente, do campo republicano.

A decisão, em si mesma, constitui, sem dúvida, uma vitória para todos aqueles que sempre defenderam que a criação de regimes de detenção e de julgamento excepcionais fortaleciam a retórica dos terroristas, constituíam armas da sua hipócrita propaganda de vitimização e acabavam por revelar uma debilidade estrutural dos estados democráticos na luta contra o terrorismo global. Na Europa, tirando uma excepção transitória no Reino Unido (rapidamente derrogada pela Câmara dos Lordes actuando como Tribunal Supremo), os processos judiciais antiterroristas foram todos conduzidos sempre de acordo com as regras do direito penal e processual penal comum e perante os tribunais criminais competentes (como sucedeu na nossa vizinha Espanha quando do julgamento dos implicados nos atentados de Atocha de 11 de Março de 2004).

A decisão tomada pela Administração americana vem assim colocar em linha todas as democracias ocidentais na forma como tratam da perseguição judicial dos atentados terroristas.

Trata-se de uma opção que tem a maior relevância do ponto de vista de defesa das liberdades públicas e da democracia e que, sem dúvida, robustece a causa da luta antiterrorista travada a partir do Estado de direito e de acordo com as regras da legalidade democrática.

Mas esta decisão não está isenta de riscos: um julgamento público, baseado no princípio do contraditório, com a obrigação de divulgação, por parte da acusação, perante o tribunal, dos meios de prova com base nos quais se pretende a condenação dos acusados e com o pleno direito de defesa destes constitui, decerto, uma prova dura e tensa acerca da capacidade de as democracias desmontarem a propaganda terrorista e demonstrarem a imperiosa condenação da barbárie terrorista.

Se assim acontecer, este será decerto um julgamento que marcará o Estado de direito democrático durante todo o século XXI!

Obs: Hoje a agressão às sociedades já não vem de "fora", emana de dentro, converte-se no terror a partir duma sola dum sapato de um indivíduo que pode viajar na cadeira do nosso lado: no carro, no comboio, no avião, no barco... Curiosamente, a convivência ao nível dos partidos políticos assume a mesma tipologia comportamental, ou seja, a traição, a violência parte quase sempre de "dentro" do sistema ou conhece as suas motivações psicológicas discriminatórias de "dentro" para "fora", paradoxalmente.

Ora, se os ataques no interior de uma modernidade viu desaparecer as distâncias espacio-temporais - por via das poderosas TIC (utilizadas ambivalentemente - para o bem e para o mal) - o mundo converteu-se numa imensa metrópole dificilmente estanque. E o trágico 11 de Setembro (e o 11 de Março), que ultrapassaram a própria ficção e o nosso imaginário no jogo das simulações mentais em que por vezes entramos na vigília, representou a versão mais trágica duma série de fenómenos típicos dum mundo negativamente globalizado, visto que reflecte o desconcerto não só dos aparelhos militares estatais contra esses inimigos invisíveis - que são os terroristas que operam em rede e de forma desterritorializada - mas também vieram por a nú as próprias estratégias políticas e económicas dos Estados para combater esse flagelo globalitário na esfera da globalidade que, hoje, nem os aparelhos de justiça sabem bem como dirimir. Ainda que com progressos pontuais, como sistematiza António Vitorino ao sublinhar que os terroristas podem (e devem) ser julgados segundo o Estado de direito e de acordo com as regras do Estado democrático.

Se assim for, também aqui a Liberdade e a Democracia farão a diferença relativamente aos métodos inomináveis praticados pelos terroristas globalitários do nosso tempo, que julgam que é com violência indiscriminada e surpreendente que capturam o desenvolvimento e a tão desejada modernidade para as suas sociedades.

Enfim, todos os séculos têm o seu caso Dreyfus...

Só que aqui os terroristas não são inocentes nem serão julgados, creio, com documentos e provas falsas ou forjadas. Nem, no limite, o julgamento aos terroristas que perpetraram o 11 de Setembro - que mudou o mundo - serão defendidos por uma vaga de fundo eco-fundamentalista que os tentará absolver desse crime contra a humanidade sob pretexto de que eles têm sido as vítimas do neo-imperialismo norte-americano (que os subdesenvolveu e deixou na miséria) que consolidou as suas raízes ideológicas, religiosas, económicas, políticas e morais nesse naco de geografia decadente conhecido por Velho Continente - que hoje é, em parte, dirigido por Durão barroso num mundo, que ainda à pouco tempo, era mal governado por G.W.Bush, Aznar, Blair e, claro, o mordomo que serviu as bebidas e os amendoins na fatídica cimeira dos Azores - que serviu de rampa de lançamento para Barroso se ter tornado o presidente da Comissão Europeia - duma Europa que hoje ainda não sabe como julgar os seus criminosos de guerra.

Ou, doravante, talvez se possa inspirar no império da lei do Tio Sam...