A sociedade dos factóides num Portugal de carvão
A sociedade portuguesa está a tornar-se num mega-factóide. Numa não-notícia.
Ontem afirmámos aqui que as notícias do mundo continuam a não prestar. Especialmente em Portugal, e demos alguns exemplos referindo a postura manhosa de Cavaco ao receber o presidente do STJ, Noronha do Nascimento, a guerra figadal deste com o PGR, Pinto Monteiro. O processo Face Oculta representa também mais uma achega para esta novela de representações, simulações que a justiça não consegue apurar, o que permite que os visados – hoje arguidos – já tenham sido condenados na praça pública. Logo, aquele princípio do direito que postula que um cidadão se presume inocente até à sua efectiva condenação, é uma miragem. Assim como o respeito pelas fugas massivas e/ou selectivas ao segredo de justiça. Em ambos os casos, estamos diante uma autentica vergonha nacional que deveria fazer corar mais os nossos agentes da justiça do que propriamente os políticos, os empresários e os banqueiros – independentemente – do seu envolvimento nos alegados actos de corrupção de que são acusados.
Esta situação leva a concluir que quem, verdadeiramente, deveria sentar-se no banco dos réus, é a nossa miserável justiça: pela incompetência, pelos atrasos, pela complexidade, pela inércia e o mais que obstaculiza ao funcionamento da boa sociedade. Como a justiça é o que é, a conclusão é só uma: o investimento directo estrangeiro não vem, as nossas empresas não conseguem ver dirimidos os seus diferendos (entre si e com o Estado), os cidadãos também desconhecem o verdadeiro significado da palavra justiça. Desta forma, instalou-se já entre nós a convicção de que a justiça é uma palavra vã, um reino de ninguém, e a relação entre o presidente do STJ e o PGR, como salientou na 2ªfeira António Vitorino no seu programa Notas Soltas – é bem exemplo dessa degenerescência evitável.
Mas o núcleo desta análise reporta-se mais à simulação, à imagem que dá cobertura a toda esta parafernália de condutas do que propriamente às condições lastimáveis em que a justiça opera, e para as quais os seus magistrados, juízes e conexos pouco ou nada contribuem para valorizar. E é daqui que decorre a banalidade dos notícias que assaltaram o espaço público nacional, povoando-o de meras ficções, de pseudo-acontecimentos, de imagens sobre imagens, de coisas mundanas, de dejectos e de resíduos sociais que têm convertido Portugal num país pouco recomendável.
Até porque não há hoje ninguém importante na sociedade portuguesa que esteja inocente ou não seja objecto de suspeição: Cavaco e as acções da SLN/BPN, Sócrates já foi objecto de assassinato político uma catrafada de vezes (parece um gato com sete vidas), o PGR é suspeito de ser um elemento anti-PS desejando decapitá-lo pela sua imensa e estranha tolerância às fugas ao segredo de justiça, a cumplicidade de Ferreira Leite com António Preto, um alegado corrupto, é, no mínimo, estranha, alguns banqueiros e empresários também não são pessoas que recomendemos aos nossos pais ou avós...
Nada nem ninguém merece hoje crédito no mercado de ideias, de pessoas e das instituições. Parece que está tudo minado. Parece que a sociedade portuguesa entrou numa nova era, a era da corrupção moral, dos costumes – criando a ilusão de que é através desse pântano, numa inversão de valores, que saímos da crise ou o país se moderniza e desenvolve.
Portugal aparece, assim, envolto numa mega-imagem, numa pseudo-notícia – e é através dela que hoje nos ligamos ao mundo. Nada ajuda neste role de desgraças, nem a posição que ocupamos no ranking da corrupção que as organizações de transparência internacional fixam.
Portugal acaba por ser notícia por causa desses sub-produtos, pequenos pseudo-acontecimentos que colonizam o espaço mediático tão do agrado dos media que vêem aqui um filão apetecível para vender notícias a pataco e envenenar a sociedade portuguesa que, por não ter assunto no domínio das suas relações interpessoais, vê aqui o patamar para opinar sobre os assuntos da nossa querida polis.
Será caso para dizer que Portugal – e os portugueses – vivem em contravenção social. Já que boa parte dos factóides que animam o espaço público resultam de ilusões, acusações, impressões, simulações, enfim, os tais pseudo-eventos que escrevem o guião do agenda-setting cujo pasto os media fornecem à “carneirada” que, acriticamente, o consome. Daí a necessidade dos filtros na observação das informações e das notícias.
E a esta contravenção social emerge outra categoria que se impõe igualmente de forma degenerada, como se de mais um cogumelo venenoso se tratasse: contravenção pessoal, alimentada pelo “diz-que-disse” ao nível das relações interpessoais. No outro lado da moeda social, encontramos o mesmo sub-produto mas protagonizado pelas nossas celebridades, vedetas – que ajudam a criar a ilusão que a realidade só existe se existir uma imagem que as oriente.
Perante isto, uma questão emerge: como podemos combater estes pseudo-acontecimentos, como podemos lutar contra estes factóides? A justiça, pelos vistos, só atrapalha, os media querem vender “notícias” e o “zé povinho”, frustrado na escala social – aproveita a onda para se vingar dos ricos, poderosos, políticos e o mais. O “Zé povinho”, fazendo jus à nossa boa tradição nacional de pessoas invejosas – detesta ver o vizinho montado num bom Mercedes, a coisa agrava-se se soubermos que sobre isso recaem suspeitas de ilícitos.
Mas o mais grave é que todo este caldo de cultura lamacenta tira espaço e discernimento para os actores do poder pensarem a política para Portugal, alinharem as principais linhas para modernizar a economia e fazer sair os portugueses do beco em que colectivamente mergulhámos. Com a sociedade infiltrada pelos factóides nacionais, torna-se difícil ter a mente limpa para estruturar ideias e sair do lodo.
Como consequência desta infiltração social, os portugueses estão a perder o contacto com a realidade, deixamos de fazer história, deixamos que as imagens ocupem o lugar dos factos que já não conseguimos criar.
Assim sendo, é a imagem do lodo, esse mega-factóide que hoje descreve Portugal perante quem nos vê e observa do estrangeiro. Ao ciclo da pedofilia sucede, doravante, o ciclo da corrupção que envolve, alegadamente, altas figuras do Estado e do meio banco-burocrático cujos contornos a justiça também não consegue apurar e julgar com decência e eficácia.
Portugal, com muita pena minha, converteu-se nessa imagem do factóide, da não-notícia, do narciso olhando-se ao espelho e achando-se lindo. Lindo de morrer, ainda por cima com um “xutaque” campónio que empresta a Portugal uma imagem subdesenvolvida, analfabeta, rural e subnutrida da década de 60 do séc. XX, ao tempo em o velho “botas” ainda dava cartas entre o Portugal pluricontinental do Algarve ao Minho – passando – por Timor-leste.
Portugal tornou-se nesse imenso Pinto Monteiro, a vergonha da nossa justiça e o reflexo miserável duma sociedade narcísica e hiper-consumista que hoje se mira ao espelho e vê devolvida uma imagem que detesta.
Uma imagem reflectida num espelho que, neste caso, é de carvão.
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