domingo

Francês para consumo doméstico - por Mário Freire -

Foto picada na rede
"Francês para consumo doméstico
Admiro a coragem dos nossos emigrantes. Eles foram para um país estrangeiro, deixando famílias e haveres, em condições difíceis, quantas vezes sem dominarem a língua do país de destino. Só com uma vontade enorme de vencer, ultrapassando obstáculos, conseguiram ganhar a vida de uma forma honrada. Eles constituem para muitos de nós, os que cá ficámos, um exemplo no acreditar nas suas próprias capacidades, no não baixar os braços perante as dificuldades, no valor que atribuíram ao seu próprio trabalho, no terem substituído o carpir das mágoas pela procura activa de melhores condições de vida.
Posto isto, tenho que explicitar a minha mágoa por um comportamento que estes nossos compatriotas exibem nestas terras de Portugal, mais evidente durante o mês de Agosto. Fico confrangido ver estas pessoas, pais a falarem com os filhos, marido a falar com a mulher, amigos entre si, em vozes bem altas para que todos possam ouvi-los, a expressarem-se em francês.
Não acredito que a causa desse comportamento tenha sido uma mágoa para com o seu país que, nem sempre, os tratou como devia e os tivesse levado a banir do seu quotidiano a língua dos seus antepassados.
Penso que o desprezo destes portugueses para com a sua língua materna, daqueles que cá nasceram e aprenderam as primeiras letras e que, depois, as circunstâncias da vida os obrigou a sair do país, se radica em razões mais prosaicas e menos políticas: numa simples atitude de afirmação perante os que cá ficaram.
Ora, como explicar que o Estado Português tente divulgar e consolidar a língua que falamos, aquilo que, pelo menos, nos une a duzentos milhões de pessoas espalhadas pelo mundo, a nossa pátria, no dizer de Fernando Pessoa, e esqueça estes nossos compatriotas? Seria, assim, tão difícil os consulados que temos em França fazerem uma campanha de sensibilização junto dos portugueses que ali trabalham? Tente-se, ao menos, no início de Agosto de cada ano, nas fronteiras terrestres e aéreas, distribuir um panfleto aos nossos emigrantes chamando-lhes a atenção para esta situação. Não seria dispendioso e talvez resultasse!"
Mário Freire, in A Voz Portalegrense
Obs: De facto, emigar é sempre um desenraizamento, mesmo intra-muros quando se muda de cidade ou de região, quanto mais quando se trata duma mudança de país, de sociedade, de língua, de cultura, de hábitos e de costumes (ou até de hábitos alimentares). É confrangedor registar os emigrantes portugueses soletrarem aquelas expressões em "franciu de plage" que é, ao mesmo tempo, ridículo e divertido, por vezes lavra-nos uma vergonha colectiva que nos interpela acerca da sua razão de ser. O entendimento de que o país d'origem lhes foi um vil padrasto poderá, porventura, explicar essa vingança cultural decorrente da emigração económica; a necessidade de revelarem uma língua e uma cultura diferentes poderá constituir uma explicação alternativa, como quem diz aos indígenas: "vejam como partimos para ganhar a vida, e, agora, regressamos novinhos em folha, com carros, roupas e, também, uma língua nova, ainda que repleta de calinadas.
O Estado, por seu turno, também não ajuda a prevenir esse ridículo cultural a que os nossos emigrantes se expõem, envergonhando também os que ficaram. Ou seja, são milhares os portugueses em França, e noutros destinos de emigração, que organizam manifestações contra as decisões do governo português de encerrar postos consulares nos países de destino afectando, desse modo, a vida de milhares de portugueses emigrados e luso-descendentes.
Parte-se do pressuposto de que os consulados dão prejuízo e os emigrantes são "carne para canhão" a que as entidades oficiais (e os partidos políticos) só concedem importância política nos momentos eleitorais e dignidade económica quando se trata de registar as remessas monetárias desses emigrantes que engordam as contas bancárias dos nossos bancos e ajudam a fazer crescer a riqueza do país - e que é redistribuída mais ou menos por todos, consoante a equidade fiscal que no momento vigorar.
Seja como for, à baixa cultura dos nossos emigrantes, sobretudo os que partiram nas décadas de 60 e 70 do séc. XX em busca de melhores condições de vida - soma-se a falta de visão do Estado português. Seja porque tem sido incapaz de fazer a proclamada reforma consular, dificultando os vistos e um conjunto de formalidades aos nossos emigrantes, seja por que os nossos políticos, os nossos diplomatas e o aparelho do Ministério dos Negócios Estrangeiros - as "Necessidades" - no seu conjunto - não têm sido capazes de conceber uma política consular eficaz e abrangente em articulação com a UE a fim de afirmar a cultura e a presença portuguesa no exterior. E enquanto isso não ocorrer temo bem que, como oportunamente refere Mário Freire, falemos todos o francês para consumo doméstico.
Confesso, por último, que no Verão as nossas praias já nem seriam as mesmas sem aquelas expressões tão divertidas - como "Michel vient já ici" - capazes de por até a "areia a rir e as ondas do mar a dançar".
Mas em inúmeros casos, e com tristeza o confesso, pouco mais mudou na realidade sociológica desses novos heróis que demandaram outras terras, do que a cilindrada dos carros que o poder de compra suplementar permitiu adquirir.