Barack Obama - do lirismo ao “poder inteligente”. Começa amanhã a medição
Dennis Brack, EPA Barack Obama será o primeiro presidente negro da história dos EUA
Barack Obama - do lirismo ao “poder inteligente”
Dennis Brack, EPA
Barack Obama será o primeiro presidente negro da história dos EUA
O momento fundador da História que os norte-americanos deram à luz a 4 de Novembro de 2008 fez-se de matizes e paixões, hipnotizou continentes inteiros e reincendiou um halo de esperança no messianismo de uma América romântica, mesmo entre aqueles que há muito haviam decretado o óbito de um “império” construído a golpes de tomahawk pela marcha neoconservadora. A América não escreveu História ao eleger para Presidente um afro-americano, mas antes por ter escolhido apagar uma herança de guerra com um poeta. Uma vez dissipada a poeira estelar, é quase certo que o deslumbre será atirado ao fosso do castelo da Realpolitik.
O primeiro aviso para a inevitabilidade do pragmatismo no recato atapetado da Sala Oval pertenceu a Hillary Clinton. Quando a engrenagem de campanha da senadora de Nova Iorque percebeu que perderia as primárias do Partido Democrático para Barack Obama, lançou-se num assalto ao lirismo do adversário. Não o fez por desespero.
Presciente, a máquina de Bill e Hillary Clinton conhecia de olhos vendados a distância que medeia entre a retórica apaixonada e a realidade do quotidiano de um ocupante da Casa Branca. Se a América queria um ”escolhido” de verbo polido, Hillary trataria de demolir a ilusão de um retorno à bondade de Walt Whitman, mostrando que era preciso algo mais para chefiar o pêndulo do Mundo. Foi então que a senadora lembrou: “As campanhas escrevem-se em poesia, mas governemos em prosa”.
A estratégia dos Clinton era inteligente. Porém, a entourage de Obama também o era. Barack Hussein Obama começaria a ser apresentado não só como um poeta, mas sobretudo com um poeta com projectos, números e calendários concretos para uma América cindida entre uma ideologia de maniqueísmo teológico, capaz de criar Guantánamo ou gerir a galeria de horrores de Abu Ghraib, e os bastiões liberais sem réstea de tolerância para o léxico imperfeito do Presidente Bush, que se compraz nas páginas de Noam Chomsky ou no novel ambientalismo de Al Gore.
Obama e a equipa de génios voluntariosos de que se fez rodear cedo compreenderam que também a as aborrecedoras tarefas da governação convocam os aspirantes à liderança a encontrar as palavras certas.
Por detrás dos milhões de dólares que começaram a ser creditados no estribilho yes we can, das coreografias dos comícios em mangas arregaçadas e do mercantilismo que perpassa todas as campanhas, em qualquer azimute, Obama encontrou sempre as palavras certas; nas primárias e no confronto com o veterano republicano John McCain, cuja aura de maverick era à partida insuficiente para remover a pátina de anos acumulada na vida asséptica do Senado.
Cataclismo
Uma boa parte dos pundits norte-americanos, a que se somou uma porção equivalente das consciências intelectuais na Europa, acredita que Barack Obama conseguiu vender a sua ideia da América no dia em que McCain decidiu interromper a campanha eleitoral e seguir para o seu gabinete de Washington, no momento em que a Administração Bush acordava para a gravidade da crise financeira.
Enquanto o senador do Arizona se mostrava titubeante, sem um roteiro à altura de um presidente, Obama era apresentado como um homem sereno que, a 20 de Janeiro, estaria preparado para enfrentar a Hidra de Lerna que ameaçava devolver os Estados Unidos às ruínas de 1929. Assim, se os pilares do sistema capitalista norte-americano pareciam ter sido erguidos sobre argila, o candidato afro-americano, cosmopolita, articulado e democrata estenderia a mudança prometida para os corredores do poder em Washington à cupidez de Wall Street.
A mensagem passou de tal modo, que nem os excessos de idealismo benfazejo preconizados para a política internacional puderam servir de arma de contra-ataque ao flanco republicano. Ademais, para a contabilidade negativa do ticket de John McCain e da inexperiente governadora Sarah Palin contribuía há muito a ausência de fé no Partido Republicano - desconfiado, numa primeira fase, da reputação de rebeldia do veterano do Vietname e glacial, numa fase ulterior, ao deixar cair uma candidatura condenada.
O equilíbrio entre os retratos de um poeta e de um líder inato foi perfeito como uma sinfonia. Desde logo mercê do trabalho de cirurgião dos estrategas da campanha de Barack Obama e do experimentado Joe Biden. Quem privava ou havia privado com o meteórico senador do Illinois era chamado a dar cara pelas qualidades do candidato. O seu biógrafo David Mendell, por exemplo, viria revelar que Obama “acalentara o pensamento de escrever ficção” nos anos da faculdade. O próprio Obama lembraria, de semblante envergonhado, que em tempos escrevera “poesia muito má”.
À sombra de Lincoln
A horas da tomada de posse a estratégia ainda colhia frutos, numa ilustração da sua eficácia. Na edição on-line do New York Times, Michiko Kakutani assinava um texto sobre a matriz literária do novo Presidente. Lembrava então o artigo que, na Indonésia, o jovem Obama tomou contacto com a história da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos em livros que lhe foram dados pela mãe, ou que “Parting the Waters”, o primeiro tomo da biografia de Martin Luther King Jr. Escrita por Taylor Branch, lhe serviu de inspiração quando fazia trabalho comunitário em Chicago. A cada parágrafo, uma biblioteca: estão lá Nietzsche e Santo Agostinho, Herman Melville e a Bíblia.
Kakutani estabelece mesmo um nexo directo entre a leitura de “Team of Rivals”, de Doris Kearns Goodwin, e a escolha da antiga adversária Hillary Clinton para o Departamento de Estado: o lívro desfia o momento em que o Presidente Abraham Lincoln decisou abrir o seu gabinete a opositores políticos.
Nada é deixado ao acaso no comportamento de Obama. Daí que Abraham Lincoln, em forma de livro, estátua ou gesto tenha sido por estes dias um espectro tutelar.
No preâmbulo da cerimónia da tomada de posse, o sucessor de Bush foi de Filadélfia a Washington a bordo de um comboio engalanado. Pelo meio, parou em Delaware para apanhar o vice-presidente eleito Joe Biden e apeou-se em Baltimore para prometer, num exercício de poderosa retórica, uma “nova Declaração de Independência”, em suma uma América livre de preconceitos e horizontes curtos.
Dias antes fora fotografado e filmado em meditação ascética num símbolo de Washington, aos pés da estátua colossal do Presidente assassinado a tiro no Teatro Ford.
Como Lincoln, o novo filho dilecto de uma certa América desencantada e de um certo Ocidente órfão apresenta-se à União com um apelo “não aos nossos instintos fáceis, mas aos nossos melhores anjos”.
Frentes
A tarefas que nas próximas semanas formarão torreões de papel sobre a secretária de Barack Obama são pouco menos que hercúleas. A começar pela tarefa de convencer os norte-americanos de que devem continuar a sufragar a revisão dos pressupostos liberais empreendida pelo secretário do Tesouro Henry Paulson, a que alguns já chamaram a nacionalização do capitalismo.
Na calha está um novo plano de relançamento da economia que poderá ascender a mais de 900 mil milhões de dólares, um montante do domínio da astronomia que sucede aos 700 mil milhões aprovados para o resgate do sistema financeiro.
Os números impressionam, mas o terramoto na economia norte-americana também: a taxa de desemprego está a níveis da década de 1970 – só em Dezembro, esfumaram-se mais 632 mil postos de trabalho – e o crédito continua a circular a conta-gotas, apesar de a Reserva Federal ter reduzido a taxa directora a 0 por cento.
É neste contexto que Barack Obama assume o lugar deixado vago pela equipa de George W. Bush. Foi por causa deste contexto que o novo Presidente foi ao Midwest a quatro dias das salvas dos canhões em Washington para avisar os norte-americanos de que “as coisas vão piorar antes de começarem a melhorar”.
O 44.º Presidente dos Estados Unidos continua a prometer “devolver os desempregados ao trabalho”, ou dedicar 100 mil milhões de dólares à recuperação de infra-estruturas para evitar cenários dantescos como o de Nova Orleães, ou aliviar o jugo fiscal sobre a classe média, ou mesmo fazer da América um farol de pioneirismo na protecção do ambiente. Mas as intervenções que precederam o espectáculo cénico e a poética da inauguration prenunciam um comandante-em-chefe bem mais pragmático.
“Vai haver falsas partidas e contratempos, frustrações e desilusões. E vamos ser chamados a mostrar paciência mesmo quando temos de agir com urgência feroz”, afirmou Barack Obama nos últimos dias.
O cenário é válido para a economia e válido para a política internacional. Nunca as expectativas da comunidade internacional voaram tão alto. E o Mundo parece ter olvidado que, durante um par de séculos, a América tratou sempre dos seus interesses antes de atender às necessidades exógenas.
Diante de uma multidão reunida em Filadélfia, Obama prometeu aplicar o idealismo dos “pais fundadores” da América ao ataque às dificuldades do século XXI. Mas de que forma é que o idealismo encaixa, por exemplo, no peso do esforço de guerra dos Estados Unidos no Iraque e no Afeganistão? O novo Presidente responde: a primeira ocupação “deve acabar de forma responsável”; a segunda deve continuar “de forma sábia”.
A mesma questão é válida para o anunciado encerramento da prisão de Guantánamo, onde prisioneiros da “guerra global contra o terrorismo” vegetam há mais de sete anos num limbo do Direito Internacional. Para lá da boa-vontade dos ideólogos de Obama persistem dúvidas sobre o destino a dar aos detidos.
Chamada a convencer o Senado de que é capaz de ser o rosto da diplomacia norte-americana, Hillary Clinton resumiu as ideias de Obama para a política internacional dos Estados Unidos com o conceito de “poder inteligente”.
Dentro de quatro anos, o Mundo saberá se a inteligência política de Barack Obama foi suficiente para iludir os 13 mil agentes de lobby que nos últimos dias assoberbaram os corredores do Capitólio, candidatando-se às respectivas fatias do plano de relançamento.
Carlos Santos Neves, RTP Obs: Amanhã deveria ser feriado mundial. Reze-se por Obama - porque a Europa depende da América.
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