quinta-feira

Pequeno tributo a Hans Kelsen: ordem velha, ordem nova...

A violação grave do Direito Internacional pela Rússia ao invadir a Geórgia seguida da concessão unilateral da independência (pela Duma e Governo russos) a duas províncias pró-russas que, de iure, integram o território soberano da Geórgia - vem colocar, neste 1º quartel do séc. XXI - não apenas uma atenção à manipulação jurídica constante da fundamentação russa (que António Vitorino dissecou eficientemente aqui, Estar só, dn) - utilizando o "guia ocidental do genocídio" e do direito humanitário (Medevedev já aprendeu bem a cartilha típica das ONGs...) - como também é sintoma das modificações da própria constituição biopolítica das sociedades contemporâneas.
Isto significa o seguinte: as mudanças em curso no sistema internacional, em que o peso do petróleo e do gás são preponderantes nos cálculos geopolíticos, já não respeitam somente ao direito e às relações internacionais, mas essencialmente remetem o analista e o decisor - se bem que em registos diferenciados - para as relações de poder no interior de cada país e da relação que este tem com a envolvente regional, neste caso a correlação que se estabelece entre a Rússia e o Cáucaso.
E é aqui que todos percebemos os limites da ONU e da parafernália de tratados, resoluções e demais quinquilharia jurídica que apenas denuncia um valor intencional sem qualquer validade material ou consequência prática imediata quando urge sancionar o Estado prevaricador no sistema internacional, a Rússia no caso vertente.
Mas ao criticarmos as velhas formas jurídicas, ao relativisarmos a anquilosada ONU - que à mínima questão fica bloqueada no seu "órgão maquiavélico" que é o Conselho de Segurança - temos, necessáriamente, de enquadrar novas formas jurídicas internacionais e supranacionais que possam suprir as insuficiências das organizações internacionais montadas no póst-II Guerra Mundial pelo sistema de Bretton Woods, hoje inoperacional.
Isto abre-nos automáticamente a porta para valorarmos acerca da teoria política do Império, nuns casos assente na leadership, noutros na força e na imposição militar, ou seja, no soft e no hard-power, como diria J. Nye.
Ora, esta violação grave do direito internacional pela Rússia recoloca os dados do problema que exigem uma redefinição do que é a soberania internacional, na sua fonte de legitimidade e até no seu exercício - a fim de mobilizar a atenção em torno dos aspectos políticos, económicos e sistémicos que envolve a própria Comunidade das nações.
Portanto, aquela ideia inicial de Kelsen, que assistiu à Conferência de San Francisco que criou a ONU, foi racional e uma emanação do espírito, proporcionando uma base efectiva para um esquema de validade do direito superior ao Estado-nacional. Ou seja, para o austríaco Hans Kelsen, a validade e a eficácia do direito podiam unir-se na fonte suprema, na tal norma fundamental (grundnorm) que tudo resolveria. Como se a sua construção formal do direito encontrasse plena correspondência com a desejada validade do sistema para que aquela apontava.
Mas, de facto, entre a sua constituição formal e a validade efectiva do direito passou a haver um fosso gritante, o mesmo que se ouviu com os gritos dos assassínios de Estado resultantes da invasão da Geórgia pela Rússia a semana passada.
É daí que os políticos, académicos, decisores em geral devem examinar o que está em transição, para melhor preencher esse gap entre a velha ideia formal que funda a validade do processo jurídico na tal entidade supranacional - que foi a ONU - de forma sofrível (como sabemos) - e a realização material dessa ideia, mas que hoje terá de encontrar uma nova armadura jurídico-política, certamente alicerçada em novas instituições, mas que, de momento, todos desconhecemos quais sejam.
O contributo de kelsen foi, de facto, decisivo para a criação da ONU, mas a lição que hoje nos deixa não evita o embaraço colectivo, já que actualmente o sistema internacional quer recorrer a uma instituição, a uma norma que coloque a Rússia dentro do direito e a faça regressar ao statu quo ante, e aquilo que temos pela frente, as usual, é a possibilidade duma nova escalada, já nutrida pela habitual linguagem da Guerra Fria, por entre ameaças veladas e navios da marinha no mar Negro.
No fundo, aquilo que foi uma esperança na armadura jurídica do sistema kelsiano (presente na Carta da ONU) - tornou-se insuficiente com o post-Guerra Fria, e hoje abriu-se caminho para mais uma deriva hobbesiana de pré-guerra - em que a soberania dos Estados sempre mediu forças no tabuleiro extra-diplomático.
E tudo isto sucede coincidindo com a alta do petróleo, que beneficia claramente a Rússia, que, curiosamente, sempre se disse comunista, ainda que hoje seja um país que reúne o poder económico e o poder político nas mãos dos ex-mafiosos do KGB que controlam todo o aparelho de Estado. Ora, a Rússia nada tem de marxista, mas tem muito de neo-maquiavélico. Aron tinha razão quando analisava a natureza do sistema político russo-soviético ao colocar o primado na motivação política, e não na motivação económica (como faziam os marxistas) - como vector de dinamização do cálculo e da práxis política.
Ou seja, a Rússia realiza-se hoje plenamente através da ordem capitalista, o que prova que a badalada "globalização" é um processo múltiplo de constitucionalização e fonte de definições jurídicas vantajosas para o Estado (ambicioso) que serve, porque é a Rússia na região do Cáucaso que hoje está a projectar uma nova configuração de poder na área, e isso implica que mais nenhum outro poder coabite alí com o legado da grande Rússia que remonta ao histórico de Ivan - o Terrível e de Stalin.

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