terça-feira

O MUNDO ESTÁ PERIGOSO - por Mário Soares - que evoca Victor Cunha Rego -

Don Mário (como lhe chama Hugo Chavez, da Venezuela) - lúcido, sereno, abrangente. Não desiste de "meter o mundo no bolso". Aos oitenta e tal anos é "obra"...
Não vou repetir o que tenho, regularmente, escrito, como matéria de análise e reflexão sobre os acontecimentos no Diário de Notícias e em conferências que faço, em Portugal e no estrangeiro. A crise é múltipla, extremamente complexa e está a tornar-se planetária. O FMI, ultraprudente, não deixou de referir que nos dois próximos anos não devemos esperar nada de bom. Tanto no plano financeiro como económico: desemprego, inflação, desequilíbrio das moedas, principalmente do dólar em relação ao euro, falta de confiança dos investidores, deficit orçamental dos Estados Unidos, a atingir níveis nunca vistos, etc. Ora, tudo isso, para ter um princípio de resolução, terá previamente de ser mudado o sistema neoliberal, responsável pela desregulação da globalização, pela falência de bancos e empresas e, ao mesmo tempo, pelo impressionante aumento da pobreza e das desigualdades sociais. Em todos os continentes. Mas não só: também por causa do que o prof. Sami Naïr chama "o alcance geopolítico da crise" (El País, 22 do corrente).
Com efeito, a ilusão hegemónica do unilateralismo americano está a desfazer-se inexoravelmente. Potência militar, ainda sem paralelo, a América do Norte, no plano financeiro, económico e geostratégico, está perante o regresso do multilateralismo em força, com a autonomia crescente dos chamados países emergentes e de diversas regiões, ricas em energia, minerais ou produtos alimentares, que estão a criar um novo dinamismo económico. Relativamente à Ibero-América, por exemplo, está a viver uma revolução democrática, pacífica e anti-imperialista inédita. Ora, a menos que haja uma mudança rápida das políticas e comportamentos, a América do Norte entrará em irremediável decadência. E, ao mesmo tempo, assiste-se na União Europeia, a uma inexplicável paralisia e falta de liderança...
2. O Próximo Oriente, onde começou o descalabro político americano, com pretextos falsos, que levou à invasão do Iraque, para combater (no sítio errado) o terrorismo, hoje está em plena crise. As lutas entre curdos, xiitas e sunitas têm-se agravado irremediavelmente. E o Iraque, como antigo Estado laico (e também "tampão", em relação ao Irão), não se vê como possa recuperar, nos próximos anos...
Antes, com a aquiescência da ONU - e o envolvimento da NATO -, sempre com o pretexto de combater o terrorismo, tinha-se cometido outro erro gravíssimo: a invasão do Afeganistão. Seis anos depois, tudo se complicou e nada se resolveu. A NATO, metida num beco sem saída, ineficaz na luta contra o terrorismo, está a tornar-se um imbróglio sem sentido. Os franceses, vítimas, há poucos dias, de uma dezena de mortos fora os feridos, que metam, finalmente, a mão na consciência e se perguntem: para quê? Mas não só os franceses...
3. O Paquistão - depois da demissão, há poucos dias, do Presidente Musharraf, "amigo", que sempre me pareceu muito ambíguo, dos americanos -, e, com o consequente afastamento das Forças Armadas das decisões políticas, mergulhou num estado de convulsão e incerteza. E em certas regiões fronteiriças como o Afeganistão, os talibãs mandam e parece terem criado um verdadeiro santuário para a Al-Qaeda. A desconfiança reinante entre o Afeganistão, o Paquistão e a Índia, dos quais os últimos dois detêm bombas atómicas, está a transformar a região num autêntico barril de pólvora.
4. O conflito israelo-palestiniano não cessa de se agravar. Ao contrário do que seria sensato, tanto para a América como para a Europa. Israel, auxiliado a fundo pelos Estados Unidos, está a tornar-se numa vítima dos seus amigos e aliados. Não só o conflito com a Palestina se tem agravado, sem remédio, como a agressividade israelita tem reforçado o campo extremista palestiniano (Hamas) e destruiu, com a infeliz invasão do Líbano, um país plural que poderia ser um elemento moderador na região. Não esqueçamos que Israel tem a bomba atómica e, espicaçado pelos Estados Unidos, não é de excluir - espero que não! - que se lance noutra aventura, desta vez contra o Irão... Seria um verdadeiro salto para o abismo...
5. Na Geórgia, na zona sensível do Cáucaso e do Cáspio, abriu-se outra frente perigosa. Encorajado pelos americanos - e uma vez mais pela NATO -, o insensato Presidente da Geórgia resolveu intervir militarmente na Ossétia, provocando mortos e estragos. Foi uma provocação feita à Rússia: mais uma, após o Kosovo, os mísseis instalados nos países do Leste (hoje membros da NATO) e dirigidos contra a Rússia. Esta reagiu com prontidão, brutalidade e eficácia. Putin preveniu que "a Rússia é uma grande potência, económica, política e militar, e como tal deve ser respeitada". Não era preciso tê-lo dito. Gorbachev, num artigo no New York Times, disse, com razão e bom senso, que "a Geórgia era a crise que a Rússia não queria". E advertiu que "se não deve isolar a Rússia". Mas a tensão continua.
6. Entretanto, Barack Obama escolheu como seu vice o senador democrata Joseph Biden. Foi uma excelente escolha. O nervosismo que as eleições presidenciais estão a provocar, na Administração Bush e entre os neocons republicanos, talvez explique as provocações e os erros graves que têm cometido, arrastando com eles a União Europeia. Espero que os dirigentes europeus percebam - enfim! - que têm de mudar de caminho... Para bem deles e de todos nós.
Obs: Pergunte-se ao Dr. Mário Soares o que é que reputa de mais fundamental no sistema de relações internacionais: o respeito pela integridade das fronteiras mundialmente reconhecidas, que hoje consagram a Ossétia do Sul e a Abkasia parte integrante do Estado independente que é a Geórgia; ou, como parece valorar, a provocação à Rússia pela Geórgia na sequência desta ter realizado a sua intervenção militar naqueles suas duas províncias - declaradas hoje independentes - de forma unilateral - pela Duma e pelo governo russos?
Parece-me que aqui a escala de valores, a ideologia anti-americana, e a hierarquia dos objectivos a atender no sistema de RI colocam o dr. Mário Soares numa posição insustentável.
Embora compreenda a crónica raiva de Soares aos norte-americanos, que se calhar ele confunde ainda com os ódios de estimação ao velho garanhão da sala oval (que remontam aos tempos da Revolução dos Cravos), Henry Albert Kissinger, que quando viajava fazia-o sempre acompanhado de duas belas mulheres, loiras a maior parte das vezes.
Enfim, a história também é feita destas pequenas estorietas que marcam e modelam os homes para sempre..