terça-feira

O teatro das nossas vidas: emoção e verdade

Na vida das sociedade ocidentais fomos treinados para não dizer tudo aquilo que pensamos, de certo modo ocultamos uma parte daquilo que supomos ser a verdade. Ainda que se trate da nossa comezinha verdade: a verdadinha. Não devemos dizer que o nosso colega é um tipo medíocre, só porque ele o é, e pode ficar melindrado com isso. Também não devemos elogiar um tipo que está acima de nós, porque somos logo acusados de bajuladores e, com isso, constituir uma plataforma para subirmos na vida - condenada por terceiros. A verdade - num caso e noutro - aleija. Mas aparte aleijar, não deixa de ser verdade que convivemos diáriamente com tipos medíocres e outros que não o são. É um fado que conhecemos, experienciamos no jogo das emoções e verdades que tecem o dia-a-dia do comum dos mortais.
Daqui decorre uma regra: nunca podemos dizer a verdade completa, denunciar a plenitude daquilo que num dado momento sentimos. Um exemplo: quando esse programador cultural do Maria Matos (cessante) que é Diogo Infante - disse que se ia demitir - é legítimo questionarmos se ele o fez já com o conhecimento prévio da sua nomeação para o Teatro Nacional ou, à contrário, pelo reconhecimento de que não conseguiria gerir o espaço cultural com limitações orçamentais decorrentes do défice municipal de todos conhecido.
Também aqui, o jogo da verdade e das emoções se coloca. Além do reconhecimento de que aquele só conseguia gerir um equipamento cultural com dinheiro a rodos, e não numa conjuntura mais restritiva, o que diz bem da qualidade do gestor cultural que temos pela frente.
Por vezes, quanto mais sentimos a verdade, menos valem as palavras que temos para nos expressar. Como se entre emoção e razão o fosso se alargasse. Até a afirmação banal - Como estás? se torna banal, ou até mesmo inadequada se a aplicarmos a um indivíduo canceroso. Também aqui a ingenuidade da verdade mata, ou pode matar. Hoje muita gente se pergunta se o programador cultural Infante - se demitiria do Maria Matos caso soubesse da sua nomeação para o Teatro Nacional...
Mas também não se pode dizer que actuamos constantemente sob a intenção de mentir, encapotar, dissimular. Viver bem, significa actuar segundo as regras, o que implica momentos de teatro mais ou menos elaborados na vida das pessoas. Até porque cada momento nas nossas vidas é predominantemente uma representação teatral. Incluindo aqui os momentos de maior intimidade, que também assumem uma dimensão pública.
So far, so good. Não há novidades. Os problemas começam quando o momento da vida das nações é de crise: financeira, social, de costumes, etc. É aqui que se multiplicam as maiores dificuldades no relacionamento interpessoal (além do lado institucional das relações), o que causa grande dôr às pessoas. Na prática, pessoas que têm algum estatuto - mantido à custa de elevados salários, deixam de os ter, isso gera grande dôr; assim como no plano do reconhecimento social - que se esfuma de um momento para o outro, também é doloroso para as pessoas essa mudança de cavalo para burro.. Agradável é descer do burro e montar imediatamente no cavalo, ainda de que de permeio nenhum estágio se fizesse para assegurar essa mudança.
Em inúmeros casos começa aqui o espectro da rejeição, da perseguição, da desidentificação social e dum conjunto de processos associados que só multiplicam as fontes de conflito interpessoal conexas aos processos sociais da vida moderna.
Daqui decorre outra regra: a vida é um conjunto de emoções num permanente turbilhão. Só por acaso as ondas se mantém tranquilas. É assim na adolescência, em que se descobre que quando se procura contar toda a verdade, mais mentiras as nossas palavras exprimem.
Volvida a fase da adolescência, entra-se na idade adulta, e aí a performance melhora, mas também pode piorar por excesso de autoconfiança. Até no espaço público, em que um player pede a sua demissão enquanto recebe uma nomeação quase em simultâneo para outra função, embora dentro da mesma área funcional. Isto é, no mínimo, bizarro.
Pouco nos importamos acerca de quem realmente somos, o que importa é actuarmos. Enquanto estudantes, pais, tios, professores, amigos, amantes, heterosexuais, homosexuais, canalizadores e também enquanto gestores culturais condensados à pressa em cursos de programadores de revista.
No meio de tudo isto, onde está a verdade? Provavelmente, ela encontra-se nas performances que tecemos fora do palco. Na vida, na vidinha do aqui e agora. No que se promete e dá, e naquilo que se tem e recebe. A verdade emerge deste trade-of de dar-e-receber diário. Nesta promiscuidade pegada que completa as nossas vidas.
A verdadeira verdade não interessa para nada. Nunca interessou. O que importa é a qualidade das representações, ou melhor, a forma como elas impressionam quem as avalia e sanciona na esfera pública, e decide incluí-las como válidas ou excluí-las.
A verdade corrente e banal do quotidiano não é necessáriamente a verdade que importa, mas a verdade que se revela [mais] útil. Isto é assim fora do teatro, mas também conhece aplicação dentro dele...