sexta-feira

Força Democrática - por António Vitorino

FORÇA DEMOCRÁTICA [link]
António Vitorino
jurista
Na primeira sessão do julgamento de um detido em Guantánamo, que foi em tempos motorista de Ussama Ben Laden, o juiz-presidente considerou que as provas recolhidas com base em tortura ou sob coacção não seriam admissíveis.
Trata-se de uma decisão do maior alcance que, em boa medida, põe termo a uma querela que começou logo a seguir aos acontecimentos do 11 de Setembro de 2001.
Antes do mais, diga-se que estes julgamentos vão decorrer nos EUA não nos tribunais comuns mas sob a jurisdição de comissões militares cuja existência e composição foram objecto de controvérsia política e de contestação por parte de grupos defensores dos Direitos Humanos.
Depois de terem sido criadas por decisão da Administração e contestadas perante os tribunais federais, as referidas comissões foram validadas por decisão do Congresso e iniciam agora as suas funções.
Importa, por isso, reconhecer que esta primeira decisão vai contribuir (e muito) para a sua legitimação e para afastar algumas das suspeições que as rodearam inicialmente, sobretudo por integrarem apenas juízes militares.
A questão do recurso à tortura e à coacção foi um motivo de querela e de controvérsia logo após os atentados terroristas de Nova Iorque e de Washington. Tratou-se de um ponto que dividiu americanos e europeus quanto aos métodos de luta contra o terrorismo e, mesmo entre os europeus, suscitou algumas discrepâncias sobre o seu alcance.
A Administração americana seguiu uma linha que, no limite, mostrava alguma complacência perante métodos de interrogatório intrusivos, em que a linha de demarcação da tortura e da coacção tidas como ilegítimas por diversas convenções internacionais e a pressão destinada a obter informações sobre actividades terroristas e até confissões de autoria de atentados resultava nebulosa e perigosamente ambígua.
Estas interpretações sofreram sempre grande contestação no seio da própria Administração americana e uma crítica cerrada em meios académicos americanos.
Certas práticas aberrantes seguidas em Abu Ghraib foram então escrutinadas pelo Congresso americano e por ele abertamente censuradas, tendo sido aplicadas sanções aos seus mais directos responsáveis.
Por contraste, na União Europeia, nenhum Estado membro se afastou formalmente das obrigações internacionais de rejeitar a tortura e a coacção, mas alguns casos vindos a público, sobre a existência de centros de detenção americanos em países europeus ou sobre a aceitação de provas fornecidas por países terceiros eventualmente recolhidas mediante métodos ilegítimos, deixaram a pairar algumas dúvidas sobre a linha de actuação seguida também na Europa.
A ilegitimidade do recurso à tortura resulta directamente de princípios e valores fundamentais da dignidade da pessoa humana e constitui um elemento essencial da autoridade moral de um combate persistente e sem tibiezas contra o terrorismo.
Os argumentos que alguns dão de que as confissões e provas obtidas sob pressão ilegítima ou mediante tortura acabam por não ter qualquer valor efectivo porque o torturado diz aquilo que pensa que aquele que o tortura quer ouvir, para se libertar da dor ou da pressão psicológica, apenas coadjuvam o argumento central atinente aos nossos valores civilizacionais, mesmo quando aplicados a terroristas sanguinários.
A decisão ora tomada pelo presidente da comissão de julgamento do motorista de Ben Laden filia-se, assim, num entendimento das regras do Estado de direito que constitui um traço comum de identidade política e cultural dos dois lados do Atlântico.
Trata-se, pois, de uma decisão que deve ser saudada e de uma esperança reforçada de que as condenações que vierem a ser proferidas serão sempre alicerçadas no respeito pelos princípios fundamentais da democracia e do Estado de direito.
Compreende-se mal o silêncio dos arautos das liberdades fundamentais perante esta decisão.
Será assim tão difícil reconhecer a autoridade moral e a força legitimadora que esta decisão confere à luta antiterrorista em geral e à democracia americana em particular?
Obs: António Vitorino vai ao detalhe e afirma-se como um humanista portador de um personalismo assinalável em matérias de defesa dos direitos humanos nas chamadas situações-limite - valores que devem conduzir os julgamentos no apuramento da verdade relacionada com os ataques terroristas que mudaram o mundo após o 11 de Setembro. Sabe, porventura, que é aí, nos detalhes, que moram Deus e o Diabo. Os métodos (deste) instrusivos nos processos investigatórios ficarão mais colados à actual Administração G.W.Bush; os métodos daquele - do rule of law ficarão, porventura, ligados aquilo que poderá vir a ser o majistério político presidencial de Barack Obama no próximo futuro a haver, e de que a intervenção de Obama ontem em Berlim deu um forte sinal ao mundo.
Sabemos que vivemos em democracia quando nos tocam à campainha e nãos nos prendem sem culpa formada; sabemos que não vivemos em democracia quando nos tocam à campainha e nos prendem sem culpa formada.
Ora, e na linha da reflexão supra, extrair confissões sob tortura constitui um crime ainda maior do que aquele que visa reparar. Além de ser o reconhecimento da fraqueza e até cobardia do estado de direito.
Valores, princípios, técnicas e métodos interrogatórios que nenhum Estado matriciado na civilização de valores ocidental poderá defender, e muito menos praticar...