terça-feira

Um conto (petrolífero) insólito - por João Negro -

João Negro era uma criança que tinha nascido em Marvila, aí passou a sua infância e adolescência. Já em adulto passava a vida a sonhar com coisas impossíveis, apesar dos seus sonhos serem com personagens reais da vida política e social portuguesa, já que Negro sempre fora um jovem culto, procurava ilustrar-se com as notícias da economia internacional, da sociedade e da cultura, e a melhor forma para o fazer era frequentar as bibliotecas municipais da Capital.
A sua vida era deambular por entre a Biblioteca Nacional, Galveias, Chiado, costumava frequentar as sessões do Parlamento e das Assembleias Municipais da Capital. João Negro era assim uma espécie de "papa" da reuniões políticas da capital, eis a forma que encontrou para ocupar o seu tempo livre, já que não precisava de trabalhar mercê de uma choruda herança que recebera de uns tios, por quem fora criado. Solteiro, bem-parecido, culto João Negro era um verdadeiro autodidacta, sabia um pouco de tudo, era capaz de integrar conhecimento, só que a sua cabeça não aguentava tanta pressão da informação, que aumentava com o tempo e a subida do preço do petróleo no mercado internacional.
Resultado: João Negro sonhava, sonhava muito e era nessa instância nocturna que extravasava muita da informação que ia compilando durante o dia, que ouvia aqui e alí, na rádio, na tv e que lia nos jornais mais especializados.
Recentemente João Negro dá com ele a contar um sonho que teve ao seu melhor amigo, João Branco, que tomava nota de tudo e que um dia iria publicar todas as conversas com o seu amigo João Negro. Branco era assim uma espécie de biógrafo do amigo. E o último dos sonhos de João Negro era mais ou menos assim: estávamos em 2012, a noite era longa e o tempo não passava, mas quando acordou Negro lembrou-se de tudo. E dentro desse "tudo" estava uma pequena "estória" que aqui damos conta.
Descobriu-se efectivamente petróleo no Beato, e para sinalizar essa proeza João Negro encontra Ramalho Eanes com um garruço de campino na cabeça às 7am em pleno Terreiro de Paço, empunhando uma pequena bandeira que dizia isso mesmo: descobriu-se petróleo no Beato. Eanes gritava o slogan seguido de outro: "acabou-se a nossa dependência energética", agora os portugueses já poderiam viajar de carro sem problemas e passariam imunes pelas dificuldades da conjuntura em matéria energética.
O poço de petróleo era tão bom e tão grande e extenso em recursos que Portugal se tornara num país exportador de petróleo, concorrendo assim com os EUA, a Rússia e alguns países do Médio Oriente/MO. Mas na cabeça de João Negro a coisa era difícil, não pela extracção do ouro negro no poço do Beato, mas pelo lado da sua comercialização internacional e, por maioria de razão, pela componente política que esta nova descoberta implicaria para Portugal. É que Portugal não sendo tão desenvolvido como os EUA mas também não era tão subdesenvolvido como os países do MO - ficou numa "terra de ninguém" e, por essa razão, hesitava acerca da melhor Organização que era suposto integrar para ter mais força no quadro das grandes negociações de compra & venda de crude que acontecem todos os dias no mundo.
João Negro sabia que se Portugal, através da sua reserva do Beato sinalizada por Eanes numa manhã diferente no Terreiro do Paço, integrasse o chamado Terceiro Mundo influenciaria a atitude dos Estados produtores de petróleo que começariam a exigir maiores receitas e mais eficaz controlo dos seus recursos petrolíferos. Nesse sentido, Portugal seria, depois de se ter europeizado e de ter estado quase 3 décadas a usufruir de Fundos Comunitários da UE - uma espécie de traidor se integrasse o grupo da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP). E que hoje, em 2015, à semelhança de 1973, Portugal seria mais um dos chantagistas que imporia o embargo ao Ocidente do qual sempre fez parte - e isso seria imperdoável para o seu conceito de desenvolvimento e para a sua matriz política, cultural e até civilizacional.
Negro vivia assim dividido entre integrar o 1º Mundo e o 3º Mundo que produzia e exportava petróleo para o resto do mundo, que ora teria de concorrer e de alimentar o escritório e a oficina do mundo, representados pela Índia e a China - que estavam a precipitar tudo. Além do grande concorrente da Rússia - com quem disputava a liderança do mercado abastecedor, baseada nos depósitos petrolíferos no Árctico e na Sibéria Oriental, entretanto activados.
Na realidade, João Negro era um homem cujo pensamento fora formatado no decurso da Guerra Fria, nesse equilíbrio de terror e de duopólio nuclear do vita mea mor tua, tão bem descrito por Raymond Aron na sua obra-prima - Guerra e Paz entre as nações, mas também sabia, como Henry Albert Kissinger havia teorizado na década de 70 do séc. XX, que, hoje, em pleno séc. XXI, que o progresso de qualquer negociação internacional já não seguia as regras da velha agenda política, pois emergia um novo tipo de acontecimentos relacionados com a energia, os recursos naturais, o ambiente, a poluição e a utilização do espaço sideral e até dos mares, que fazia com que as velhas noções de risco, ameaça, instabilidade e conflito que derivavam do alinhamento de questões militares, ideológicas e de rivalidade territorial hoje integrassem um novo filão de questões justapostos à segurança económica - de que a gestão global do petróleo e das demais fontes energéticas passariam a ser o padrão. João Negro sabia isso tudo, até que o ouro negro tinha vindo a perder quota de mercado a favor de outras origens energéticas, apesar do petróleo ainda ser o responsável por cerca de 40% da energia primária total consumida, o que é um drama e pode redundar, se nada for feito, numa tragédia global da Humanidade.
Portugal, na cabeça baralhada de João Negro, cujas notas o seu amigo João Branco tentava acertar num mundo mais ou menos caótico - que oscilava em função do próprio comportamento do preço do "ouro negro" no mercado internacional, era, doravante, um país rico mas profundamente hesitante e dividido em matéria de alinhamentos políticos para assegurar uma distribuição seriada da sua nova riqueza que, se a encaminhasse para Norte traía os seus ideais desenvolvimentistas em prol dos países mais pobres e dependentes; se, ao invés, a encaminhasse para Sul estaria a reduzir a sua estatura internacional e daí nenhuma onda de modernização e efectivo desenvolvimento resultariam para Portugal, pois sabia que essas exportações seriam liquidadas tarde e a más horas e sem nenhum interesse tecnológico que visasse a modernização da economia e da sociedade portuguesa.
À luz deste dilema, Portugal era ainda um país a meio caminho na escala do desenvolvimento social e humano, tese reforçada pelos Relatórios internacionais que João Negro também conhecia.
João Negro, com tudo aquilo que lera, com tudo aquilo que ouvira em matéria de hidrocarbonetos e de políticas energéticas sabia que o poço de petróleo descoberto no Beato não iria ser pacífico para Portugal e para o seu modelo de desenvolvimento. E que todos ficaríamos reféns das suas vendas, talvez mais até do que algumas das maiores economias industrializadas estão dependentes dos abastecimentos.
João Negro sonhava também muito com bicicletas..., numa tentativa de esquecer esses pesadelos feitos de lençóis de petróleo. A última vez que foi visto dizia precisamente isso a Manuel Pinho - numa esquina da Golpe energia perto da 2ª Circular...