"O motorista de autocarro que queria ser Deus" - por Etgar Keret
Eis a história de um motorista de autocarro que recusava abrir a porta do autocarro às pessoas atrasadas. Não abria a porta a ninguém. Nem aos alunos apressados que corriam ao longo do carro com olhares tristes, muito menos aos tipos nervosos de anoraques que davam murros na porta como se tivessem chegado a tempo e ele é que estivesse em falta, e nem sequer às velhinhas com sacos de papel craft carregados de provisões, que lhe faziam sinal com a mão a tremer. Não era por maldade que ele não abria a porta, porque não havia nele sombra de maldade, mas por ideologia. De acordo com esta ideologia, mesmo que a demora causada pela espera de um passageiro atrasado mal chegasse a meio minuto, e o passageiro que ficava em terra perdesse por isso um quarto de hora da sua vida, continuava a ser mais justo para com a sociedade não lhe abrir a porta, porque esse meio minuto era perdido por cada um dos passageiros do autocarro. E, se houvesse no autocarro sessenta pessoas que tinham chegado à paragem a tempo, perdiam em conjunto meia hora, que é o dobro de um quarto. Era esse o motivo pelo qual ele nunca abria a porta. [...]
Obs: Tem lógica esta pérola narrativa, embora detestável socialmente, o que não dispensa Etgar de ser um bom escritor numa sociedade que vive à velocidade da luz e dos F-16 cercada de inimigos e tem de ser super-organizada por razões de sobrevivência. Etgar Keret é romancista, autor de BD e um dos escritores israelitas contemporâneos mais populares, por isso aqui o publicamos. Mas quando Keret for velhinho e segurar aqueles sacos de papel craft nas mãos ele irá escrever outro conto de sinal inverso.
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