Duas crise - por António Vitorino -
DUAS CRISES
António Vitorino
jurista
Na última semana ocorreram duas catástrofes naturais em Myanmar e na China, provocando dezenas de milhares de mortos e de desalojados.
As reacções a estes cataclismos por parte das respectivas autoridades não podiam ser mais contrastantes.
Enquanto na China assistimos a uma assunção clara da dimensão da tragédia e a uma mobilização em massa dos serviços de protecção civil e das próprias forças armadas no apoio às vítimas, na antiga Birmânia prevaleceu uma lógica política de ocultação e de dissimulação dos efeitos do ciclone sobre as populações.
Numa primeira análise, importa sublinhar que está em causa a dignidade das pessoas e o valor supremo da vida humana.
A China e Myanmar são muito diferentes entre si, como países e como tradição histórica e cultural, mas a diferença das reacções não se pode explicar por qualquer razão filosófica.
Pelo contrário, estando em causa os mesmos valores, só razões de ordem política podem explicar tais diferenças.
A escassas semanas dos Jogos Olímpicos, as autoridades chinesas sabem bem que os olhos do mundo estão concentrados em Pequim e que uma catástrofe com estas dimensões sempre teria uma repercussão global.
Por isso, para além da sua obrigação directa de socorrer as vítimas, as autoridades chinesas apostaram numa política de abertura e de informação que nos permite a todos, observadores exteriores, não só solidarizarmo-nos com as pessoas atingidas mas também elogiar a eficácia da resposta dada.
No caso de Myanmar, a Junta Militar adoptou a conduta oposta. Minimizou as consequências do ciclone, primou pela ineficácia (ou ausência mesmo de resposta), preferiu persistir na realização de um referendo que visa concentrar (ainda mais) o poder nas mãos dos generais e barrou o acesso internacional quer à informação quer às equipas de apoio humanitário.
Já muito se escreveu sobre o que significa esta actuação. Mais até do que a omissão do dever de proteger as populações que incumbe às autoridades de um Estado, estamos perante uma conduta equiparável à de um verdadeiro genocídio em massa. Os governantes birmaneses não podem ignorar a dimensão da catástrofe nem as suas previsíveis consequências e, por isso, ao recusarem o socorro às vítimas, só podem pretender o resultado a que infelizmente iremos chegar: para além das mortes directamente provocadas pelo ciclone (oficialmente serão mais de 30 mil, observadores diplomáticos, contudo, indicam que podem chegar aos cem mil), as doenças e o estado de abandono dos sobreviventes poderão ampliar ainda mais estes números terríveis.
E perante este cenário de horror, que provoca uma justa indignação à escala planetária, não se pode deixar de lamentar a tibieza da reacção da comunidade internacional.
Não me refiro, claro está, aos apelos e às declarações retóricas dirigidas às autoridades de Rangum. Nesse plano todos estiveram presentes e fizeram as declarações do costume.
Mas o que é chocante é, por um lado, a inacção das Nações Unidas e, por outro, a divisão sobre o tema dos europeus.
Como europeísta que sou fico desolado ao saber que o Conselho dos Ministros dos Negócios Estrangeiros da União Europeia não deu sequência a uma proposta da Alemanha, da França e do Reino Unido no sentido de desencadear uma operação de ajuda humanitária assente em corredores protegidos que permitissem o acesso directo das organizações não governamentais às zonas sinistradas e a entrega de ajuda às populações afectadas. Prevaleceu a regra da unanimidade e o resultado prático foi enviar o comissário do Desenvolvimento a Rangum para convencer os militares...
De igual modo as Nações Unidas não foram capazes de desencadear uma operação de pressão sobre as autoridades de Rangum que fizesse a diferença para as vítimas. Impunha-se uma atitude muito mais enérgica do Conselho de Segurança (onde seria improvável que a China, até pelas razões acima indicadas, pudesse levar até ao fim uma possível intenção de veto), que poderia mesmo indiciar a efectivação da responsabilidade penal internacional dos autores do crime de genocídio.
Obs: Façam-se umas centenas de cópias desta reflexão para enviar aos organismos internacionais do costume zeladores do status quo, quem sabe algum desses organismos ou mais fieis representantes do ideal europeu possam receber a chave da cidade Rangum - para colocarem uma velinha por cada uma das vítimas desta catástrofe natural (a que se soma uma catástofre política típica das ditaduras) e em relação à qual a dita Comunidade internacional pouca ou nada fez, faz e fará. Enfim, o cinismo e a hipocrisia do costume, desta feita a custo de milhares de vidas.
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