sábado

A VELHICE - por António Lobo Antunes - e glosado por Joaquim Paula de Matos -

Picado no Memórias Futuras, de Joaquim Paula de Matos
A VELHICE
(Por António Lobo Antunes)
Devo estar a ficar velho: as Paulas Cristinas têm mais de 20 anos, os Brunos Miguéis já vão nos 15, as Kátias e as Sónias deram lugar a Martas, Catarinas, Marianas. A maior parte dos polícias são mais velhos do que eu. Comecei a gostar de sopa de Nabiças. A apetecer-me voltar mais cedo para casa. A observar, no espelho matinal, desabamentos, rugas imprevistas, a boca entre parêntesis cada vez mais fundos. A ver os meus retratos de criança como se fosse um estranho. A deixar de me preocupar com o futebol, eu que sabia de cor os nomes de todos os jogadores do Benfica (…). A desinteressar-me dos gelados do Santini que o Dinis Machado, de cigarrilha nas gengivas achava peitorais.
Se calhar, daqui a pouco, uso um sapato num pé e uma pantufa de xadrez no outro e vou, de bengala, contar os pombos do Príncipe Real que circulam, de mãos atrás das costas como os chefes de repartição, em torno do cedro. Ou jogar sueca, com colegas de boina, na Alameda Afonso Henriques de manilha suspensa no ar, numa atitude de Estátua de Liberdade. (…). Quando der por mim, encontro o meu sorriso na mesinha de cabeceira, a troçar-me, num copo de água, com 32 dentes de plástico. Reconhecerei o meu lugar à mesa pelos frasquinhos dos medicamentos sobre a toalha, que me farão lembrar as bandeiras que os exploradores antigos, vestidos de urso como os automobilistas dos tempos heróicos, cravavam nos gelos polares. (…)
Devo estar a ficar velho. E no entanto, sem que me dê conta, ainda me acontece apalpar a algibeira à procura da fisga. Ainda gostava de ter um canivete de madrepérola com sete lâminas, saca-rolhas, tesoura, abre-latas e chave de parafusos. Ainda queria que o meu pai me comprasse na feira de Nelas, um espelhinho com a fotografia da Yvonne de Carlo, em fato de banho, do outro lado. Ainda tenho vontade de escrever o meu nome depois de embaciar o vidro com o hálito. (…).
Pensando bem (e digo isto ao espelho), não sou um senhor de idade que conservou o coração de menino. Sou um menino cujo envelope se gastou.
Obrigado, António Lobo Antunes, por este texto.
Temos em comum a idade (menos 3 anos que eu nem conta), a fisga, o espelho redondo com a fotografia da Yvonne de Carlo, em fato de banho, do outro lado e o canivete que no meu caso era uma navalha igual à que os trabalhadores do campo usavam na Beira-Baixa e que servia para tudo, incluindo tirar bocadinhos à sardinha frita com uma precisão cirúrgica e cortar os respectivos nacos de pão que acompanhavam, nos seus almoços frugais, a sopa de feijão com couves que lhes davam forças para cavarem de sol a sol.
Vê lá, que tenho ainda presente, como se tivesse sido ontem, o único passarinho que consegui matar com a fisga. Espalmei-lhe a cabeça com a pedra, teve morte instantânea, caiu da árvore redondo, na vertical e eu senti-me vaidoso com a minha pontaria, fosse uma seta em vez de uma simples pedra e eu ter-me-ia sentido um Robin Hood… os restantes passarinhos aos quais fiz pontaria sempre conseguiram fugir.
Faltava-me o treino, eu era um menino da cidade de Lisboa, tal como tu, mas que tinha a sorte de passar as férias na aldeia dos meus avós onde, no Verão, se juntavam os primos todos.
Mal sabia eu, nessa altura, que estava vivendo os tempos mais felizes e descontraídos da minha vida aqueles que, meio século depois, continuam a fazer-me sentir um menino com o envelope gasto…como dizes magistralmente.
Nunca envelhecerei completamente porque esse menino vai estar sempre presente, mesmo aos 90 anos e não é ele que é o intruso.
Intruso, é tudo aquilo que se intrometeu na minha vida e esbateu as memórias da minha juventude e que faz com que o menino, embora presente, esteja cada vez mais longe de mim.
É tal como dizes, não somos velhos, com alguma condescendência seremos meninos que envelheceram.
No teu caso valeu a pena, foste aproveitando o tempo e os anos para escreveres coisas profundamente humanas, que nos falam à alma e que vão ficar para sempre impedindo que morras na memória dos homens embora isso, para ti, já não seja importante.
Importante, verdadeiramente importante, era mesmo continuares sempre menino para poderes chamar aos pombos do Jardim do Príncipe Real, chefes de repartição a passearem de mãos atrás das costas, sim, porque só a perspicácia de observação de um menino poderia ver tal.
Eu, que passei muitas horas nesse Jardim a estudar e a ler na companhia dos tais pombos, só agora, porque falas nisso, acho que alguns também faziam lembrar os polícias de giro do antigamente a passearem a sua autoridade de mãos atrás das costas.
E quanto aos sinais de velhice que referes e que te levam a desconfiar que talvez estejas a ficar velho, brinca com eles, faz chalaça, afinal não és tu um menino cujo envelope se gastou?
posted by Joaquim Paula de Matos at 10:32 AM links to this post Quinta-feira, Dezembro 27, 2007
Obs: Gostaria, mas não vou aqui comentar o texto de António Lobo Antunes, nem o texto, complementar, do meu Tio, Joaquim Paula de Matos. Não o faço para "não estragar a mobília", como se diz na gíria. Mas quero referir que compreendo ambos, entendo o que ambos pensaram e escreveram. Com os meus 41 anos, idade de fronteira entre aquele passado e o futuro que rasga sempre horizontes novos, tudo aquilo que eles escreveram não me é alheio ou indiferente. A fisga, os passarinhos (e as passarinhas, que tombavam sem funeral digno, que eram o nossos estômagos - depois comidos fritos em azeite e alho), os pombos do jardim do Príncipe Real, povoado com aquela 3ª Idade tão deprimente quanto decadente, pois até parece que aquela boa gente não estudou, não trabalhou para saber fazer coisas diferentes na velhice e ocupar melhor os seus tempos livres.
Todas essas memórias assumem hoje novos significados, para mal dos nossos pecados: a fisga converteu-se n'algo completamente diferente por um sector de pessoas que usam o terror para impôr os seus pontos de vista, e os aviões comerciais são, hoje, as modernas pedras jogadas contra - não já os passarinhos - mas contra edifícios com pessoas lá dentro. As consequências são piores. Os reformados do Príncipe Real, que alí jogam à sueca, e assumem o papel de mirones, comentam a bola, a política e a carestia de vida - são hoje "odiados" pelos respectivos netos que, embora sendo licenciados - não podem supor que, um dia, terão uma reforma condigna.
E, portanto, são jovens que já nascem reformados, são os jovens-velhos desta nova velha Europa - agora a 27. Que vivem (ainda) em casa dos pais até aos 40/50 anos e ainda são apanhados com as namoradas a fazer "poucas-vergonhas", além de estourarem com as magras reformas aos velhos, que nem já para os medicamentos chega... Enfim, uma miséria transgeracional. Os tais que jogam à sueca no Príncipe Real e assinalam o "deve e o haver" num cartão que repescaram da véspera, já todo sujo e salpicado com caganetas de pombo e restos de comida de marginais que por alí também dormem ao relento. Os "novos jovens" não jogam à sueca, mas jogam em consolas de PC, e, se calhar, envelhecem ainda mais depressa do que o António Lobo Antunes e o Joaquim Paula de Matos juntos.
Porque apesar de não existir já o império, e a guerra colonial não contar neste novo cômputo social, os jovens d'hoje têm que travar lutas que são, verdadeiramente, novas guerras sociais dentro de muros. Com a agravante de que essa nebulosa chamada globalização - o tal elemento oculto mas interferente em todos os tabuleiros da decisão - acaba por amplificar as vantagens daqueles que são já muito ricos, os chamados aristocratas do risco, mas, por contraponto, agravar ainda mais as desvantagens das multidões em fúria que pouco ou nada têm.
Até me apetece dizer, que cada um envelhece como pode, embora hoje as pessoas da minha geração, creio, envelhecem mais rápidamente do que a geração do António Lobo Antunes e do Joaquim Paula de Matos. Por causa do tal quadro de incerteza, risco e insegurança que faz com que todos os dispositivos socioeconómicos associados entrem em ruptura.
Neste quadro, pergunto-me como será povoado o Príncipe Real daqui por 20 anos? Que fauna humana vegetará por lá! Jogando que jogo? E as mãos, serão colocadas à frente ou atrás das costas?
Penso que haverá de tudo neste terrível jogo de espelhos, até já (pre)vejo o futuro. Um futuro que reflecte homens sem mãos. E assim, como se compreenderá, torna-se mais difícil jogar à sueca...