quarta-feira

Religião e política, a difícil relação - por Francisco Sarsfield Cabral -

in Público, 24 de Dez., 2007
Religião e política, a difícil relação
O Natal é cada vez menos uma festa religiosa. Até Bush evita referir o Natal nas boas-festas (season’s greetings), para não ofender os não cristãos...
Ainda assim, é altura para pensar no difícil relacionamento entre religião e política. Depois do 25 de Abril, em Portugal essa relação tem sido geralmente saudável, apesar de alguns problemas recentes. Mas a próxima comemoração do centenário da República poderá reavivar velhos ódios e incompreensões.
As coisas estragam-se quando o poder político interfere na esfera religiosa. Ou quando, inversamente, a religião tenta condicionar a área política e se serve dela para os seus fins. Não faltam exemplos das duas perversões.
O Evangelho manda dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César. Preciosa distinção (inexistente no Islão), à qual os cristãos nem sempre foram fiéis – desde a estatização do cristianismo no Império Romano, com Constantino, até às resistências à consagração da liberdade religiosa no Concílio Vaticano II, passando pelo imperativo (promovido pela Reforma protestante) de os povos terem de seguir a religião do seu rei.
Em Portugal, até 1910 só a religião católica podia exercer o seu culto em público. Ainda hoje, e por muito que tal pareça estranho numa Europa descristianizada, no Reino Unido o chefe da Igreja Anglicana é a Rainha. Até há pouco, quem nomeava os bispos da Igreja Luterana da Suécia era o governo de Estocolmo. E a constituição grega dá uma explícita preferência à Igreja Ortodoxa.
Por outro lado, o islamismo radical de algumas comunidades imigrantes já levou a França a pôr a hipótese de alterar a lei de separação entre Estado e Igrejas, de 1905, de maneira a permitir financiar mesquitas com fundos públicos, evitando o seu financiamento por fontes radicais sauditas. Lei que alguns franceses entendem ter sido violada pelo Presidente Sarkozy, ao defender há dias que as religiões não são um perigo, mas um trunfo.
A lei de separação de 1911, em Portugal, ia no sentido certo. Mas surgiu num quadro de feroz ataque à Igreja pelo Estado. Afonso Costa prometeu acabar com o catolicismo no país em duas gerações. Entretanto, no mundo, o comunismo combateu a religião como fenómeno alienante.
Nos Estados Unidos, onde a vivência religiosa é mais forte do que na Europa, a Constituição proíbe misturar religião e Estado. Mas o factor religioso está no centro da política americana. Em 1960, ser católico foi para John Kennedy uma dificuldade eleitoral. Recentemente, a chamada “direita cristã”, sobretudo protestante evangélica, deu a Bush uma importante base de apoio.
Na presente corrida presidencial o apelo religioso está mais presente do que nunca. O republicano Mitt Romney defende o papel da religião na política. Romney tem um problema: uma boa parte do eleitorado republicano, a tal “direita cristã”, desconfia dele, por ser mórmon. E por haver sido favorável à liberalização do aborto, tendo mudado de opinião aparentemente por táctica politica.
Ainda pior visto por essa “direita cristã”, outro pré-candidato republicano, o ex-mayor de Nova Iorque Rudy Giuliani, pode não ser nomeado. Assim, no campo republicano sobem as “chances” do pregador baptista Mike Huckabee.
Do lado do Partido Democrático também há apelos à religião. Barack Obama, que concorre com Hillary Clinton na luta pela nomeação, multiplica referências a Deus e ao cristianismo, tal como a sua apoiante Oprah Winfrey.
É inaceitável sugerir, como Mitt Romney, que só quem professa uma religião pode ser bom político. A liberdade religiosa é também liberdade para os não crentes em qualquer religião. Mas a neutralidade religiosa e ideológica do Estado não pode significar a imposição do laicismo à sociedade, fechando a religião na esfera privada e pessoal.
“A neutralidade ideológica do poder do Estado, que garante liberdades éticas a todos os cidadãos, é incompatível com a generalização política de uma mundividência laica. Os cidadãos laicos, na assunção do seu papel de membros da sociedade, não devem negar liminarmente o potencial de verdade das concepções religiosas do mundo, nem tão pouco contestar o direito dos seus concidadãos crentes a intervir, numa perspectiva religiosa, em discussões públicas”.
Eis uma boa distinção entre laicidade democrática e laicismo opressor, vinda de um filósofo agnóstico, J. Habermas.
Francisco Sarsfield Cabral
Jornalista
Obs: Um excelente artigo do Francisco que reflecte duas coisas: cultura religiosa no carrefour da cultura filosófica, e tolerância cultural e civilizacional. Elementos essenciais para construirmos um novo mundo, ainda que ele comece por tornar mais saudáveis as relações do poder do Estado com a influência da Igreja católica. O facto de Mário Soares se ter declarado socialista, republicano e laico (e hoje ter um programa na tv paga por nós para falar, pasme-se, do diálogo inter-religioso) não o impediu de ter ganho dois mandatos em Belém. Ora isto vindo dum povo que ainda venera Fátima é algo de esquizofrénico, ou talvez não. Talvez o mote para um próximo artigo do Francisco. E Cavaco - irá ele à missa todos os Domingos de manhã na Igreja da Lapa? De Paulinho Portas nem valerá a pena falar, pois nem a missa o absolve, mas pergunto-me que religião professará Sócrates, e que peso terá na sua conduta diária. Creio que é, por vezes, problemático separar uma coisa da outra, sobretudo quando a política começou por ser ou ter uma origem religiosa. Ou foi o contrário...