sexta-feira

ANDORINHAS EM DEZEMBRO - por António Vitorino -

António Vitorino
jurista
A chegada de 23 marroquinos às costas do Algarve numa embarcação minúscula parece ter sido obra do acaso. O mau tempo teria provocado um desvio na rota e consequentemente quando almejavam Cádis vieram dar à ilha da Culatra.
As televisões deram-nos imagens, inéditas em Portugal, mas que infelizmente são muito comuns, quer nas costas espanholas quer nas costas italianas e da ilha de Malta. Tivemos assim um lampejo do drama humano e dos riscos de vida que a imigração clandestina oriunda do Norte de África envolve.
O acontecimento pode ter sido de facto fortuito, mas não foi de todo inesperado.
Conhecida a realidade da pressão migratória clandestina no estreito de Gibraltar (esses 12 quilómetros que separam os dois continentes), sempre me interroguei das razões por que os fluxos migratórios não visavam também a costa sul do nosso país. Para além da diferença da distância, acresce a agressividade do mar e dos ventos na entrada do Atlântico, que assim aparecem como uma barreira natural. Mas uma barreira não intransponível, como este caso veio a provar, ainda que aparentemente de forma involuntária para os seus protagonistas...
Sabemos agora pelas declarações dos responsáveis pelo controlo de fronteiras que este episódio não apanhou os serviços competentes desprevenidos e que desde há mais de dois anos têm sido levadas a cabo acções de preparação e de prevenção. Nesse quadro, a participação de Portugal nas operações da Agência de Fronteiras Externas da União Europeia (Frontex) aparece como um elemento importante de familiarização e troca de informações sobre as correntes migratórias do Mediterrâneo. Do mesmo modo a estreita cooperação com Cabo Verde, traduzida num acordo de parceria especial com a União Europeia, designadamente no domínio da imigração e da segurança, demonstra a necessidade de termos uma visão global das pressões migratórias para além da nossa fronteira imediata.
Os marroquinos recém-chegados serão agora submetidos aos procedimentos legais adequados e previsivelmente enviados de volta para o país de origem. Trata-se de um teste real ao regime de expulsão português e de readmissão por parte de Marrocos, que convém seguir de perto para tirar lições deste "caso-piloto".
O perfil dos imigrantes recolhidos é já clássico noutras paragens: jovens, algumas mulheres por sua própria iniciativa, muitos deles com qualificações profissionais e nalguns casos mesmo habilitações académicas superiores. Em princípio pessoas com um grau de consciência e de cultura geral que lhes permite decerto terem sopesado com cuidado os riscos inerentes à travessia feita naquele barquito que as imagens nos mostraram e que dificilmente se compreende como é que teve capacidade para 23 pessoas durante, ao que os próprios dizem, cerca de quatro dias.
No entender das autoridades responsáveis, este caso pontual não altera o perfil e a análise de risco sobre a pressão migratória oriunda do Norte de África e que até agora não tem tido Portugal como destino. É verdade que uma andorinha não faz a Primavera.
Mas convém também, sem alarmismos nem precipitações, não facilitar. Os fluxos migratórios são muito flexíveis e as rotas alteram-se com grande rapidez, muitas vezes em função da capacidade operacional das redes de passadores que operam e que cobram quantias avultadas (a crer nestes testemunhos entre 300 e mil euros). Assim como importa seguir com cuidado a pista de eventuais ligações a redes de tráfico de droga que são muito activas nesta região do Mediterrâneo e que nas suas actividades criminais se dedicam simultaneamente a vários tipos de ilícitos.
O acontecimento pontual em causa serve bem para justificar a importância que Portugal atribuiu aos temas da imigração durante a presidência da União Europeia, quer na promoção de canais legais de imigração quer no estabelecimento de parcerias com os países do Mediterrâneo que incluam também o combate à imigração clandestina.
É que em cada Primavera há sempre uma primeira andorinha.
Obs:
António Vitorino (AV) pensa e escreve acerca de um assunto que lhe é caro: a realidade da pressão migratória clandestina que agora "tocou" a Portugal. Devo recordar que ainda no início do ano que ora finda, ele próprio coordenou um
projecto editorial que foi apresentado na Fundação Caloust Gulbenkian em Março - e que merece ser relido e meditado. Devo adiantar, em abono da verdade, mais o seguinte: este ano tive a vantagem de começar aqui a reproduzir e a comentar mais regularmente a produção teórica de AV - que sigo com interesse intelectual na folha do DN, na antena da tsf e na RTP na sua rúbrica - Notas Soltas. Como se isso não bastasse tenho também o privilégio de beneficiar da sua amizade, que me honra e valoriza, devo sublinhar tudo isto aqui publicamente. Porque aquilo que se diz em privado também devemos assumi-lo publicamente. E o homem do futuro, como diria o Friedrich Wilhelm Nietzsche - é aquele que tiver a memória mais longa...
Já agora, votos de Feliz Natal e um Bom Ano para AV - são os sinceros votos do Macro, i.é, que regresse em 2008 com mais razão analítica, porque, regra geral, quando se tem a razão analítica também se tem razão política, e se isso contribuir para valorizar as condições de vida dos portugueses - melhor ainda.

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