O Público gostou desta nossa passagem
Em 1975 foram nacionalizados os bancos portugueses. E assim ficaram longos anos por teimosia socialista, pois até 1989 a Constituição considerava irreversíveis as nacionalizações. Mas, ainda antes de eliminada a absurda proibição de privatizar, surgiram novas instituições financeiras privadas.
A primeira foi a Sociedade Portuguesa de Investimento, lançada por Artur Santos Silva e que depois viria a transformar-se em banco, o BPI. Outra foi o Banco Comercial Português, a partir de um desafio lançado pelo governo de Mário Soares a Jardim Gonçalves, então em Madrid. Tal como Santos Silva, Jardim Gonçalves concebeu um projecto bancário e convenceu investidores privados a entrarem como accionistas.
O BCP abriu ao público em 1986 e cresceu de forma espectacular. É hoje o maior banco privado português. Ninguém podia prever os recentes desastres, alguns deles com possíveis incidências criminais, que nos Estados Unidos provavelmente dariam cadeia (mas, aí, o capitalismo é levado a sério, sem contemplações para quem infringe as regras).
É verdade que no BCP existiam certos indícios de mau agoiro, como o exagero dos vencimentos dos seus gestores. Mas as operações irregulares agora apontadas são, pela sua gravidade, algo de invulgar entre nós. E só foram conhecidas porque, no quadro da luta interna pelo poder, alguém do banco fez chegar documentos comprometedores a um accionista (Joe Berardo, que depois os apresentou a quem de direito) – em vez de esses papeis terem sido logo entregue às autoridades de regulação do sector bancário, como a lei determina.
O mais deprimente desta história é o golpe dado à esperança de que, em Portugal, emergisse gradualmente uma nova classe empresarial, afirmativa e autónoma, menos dependente do secular encosto ao poder político e com algum sentido cívico e ético. Ainda antes de se falar em Armando Vara para vice-presidente da proposta nova administração do BCP, liderada pelo até há poucos dias presidente da concorrente Caixa Geral de Depósitos (Santos Ferreira, um gestor competente, ex-deputado do PS), Vasco Pulido Valente disse o essencial no Público do dia 23: “não se engana quem desespera do capitalismo português”, considerando “simbólico” que o maior banco privado nacional passe a ser presidido por quem mandava na estatal CGD.
Esquema no qual se empenhou António Mexia, presidente da EDP, empresa que o Estado ainda controla com a sua golden share. Segundo o Público, Mexia terá ponderado candidatar-se ele próprio à presidência do BCP, sendo de tal dissuadido... pelo primeiro-ministro, que precisa dele na EDP.
Claro que há em Portugal empresários autênticos. Mas representam a excepção. A regra, desgraçadamente, continua a ser a do conúbio, directo ou indirecto, com o Estado. É a antiquíssima via portuguesa para o capitalismo. E é sabido que governos considerados de esquerda, como o actual, costumam facilitar a vida aos empresários, ou a parte deles.
O desejo de alguns agentes económicos de estarem próximos do poder politico explica muito do empenho posto na defesa dos chamados centro nacionais de decisão empresarial (lembram-se?). Querem estar no quentinho, junto ao Estado que lhes proporciona bons negócios e os protege da concorrência estrangeira.
Com um presidente e um vice-presidente socialistas e próximos do Governo, este e o PS passarão a ter influência no maior banco privado português, paradoxalmente criado para contrariar a estatização da economia. Sendo que o maior banco, a CGD, já pertence ao Estado. Significativamente, o protesto imediato do líder do PSD foi reclamar a presidência da CGD para um sócio ou simpatizante do seu partido, como veio a acontecer.
Grave, aqui, não é apenas a ânsia de poder dos políticos. Pior é serem accionistas privados a proporcionar esta aproximação do BCP à órbita estatal. Diz-se que o Banco Espírito Santo tem relações privilegiadas com o poder político. Há quem lhe chame o “banco do regime”. Mas, pelo menos, no BES o Estado não manda (talvez o BES mande alguma coisa no Estado, mas essa é outra história).
No BCP são os privados a abrirem a porta ao regresso do Estado ao sector bancário. Não formalmente, claro. Mas só não vê quem não quer.
Há décadas que defendo a iniciativa privada em Portugal. Por isso este caso provoca-me não apenas frustração, mas sobretudo vergonha. A iniciativa de Miguel Cadilhe de apresentar uma lista alternativa poderá atenuar o desconforto? É cedo para saber. Francisco Sarsfield Cabral
Jornalista
Sugestão de destaques: A via portuguesa para o capitalismo é o conúbio com o Estado
Pior do que a ânsia de poder dos políticos é serem accionistas privados a proporcionarem esta aproximação do BCP à órbita estatal
Obs: Um proficiente artigo do Francisco sobre a natureza e comportamento do meio financeiro nacional na sua relação com o Estado.
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