África e uma singela evocação ao Armando Rafael
Tenho para mim que um europeu que já tenha ido a África é um homem mais valorizado, com mais mundo: cultural, antropológica, sociológica, política e humanamente. Doutro modo permanece um homem sem mundo, qual espécie de "algarvio" que "come para dentro da gaveta" (como se dizia antigamente) e olha de soslaio para os outros, sempre animado pela inveja, pelo rancor, pela gula e pelo ressentimento do sucesso dos outros. Aqui a conduta de certos Estados no sistema internacional é semelhante à de certos "amigos de alcova" que, em rigor, e repito, "comem para dentro da gaveta" - no seu mais puro egoismo senão mesmo egocentrismo, de tão pobres de espírito que são.
Porém, Sócrates ao convidar o energúmeno do Mugabe foi inteligente, porque mete-o dentro da tenda chamada Portugal e lá pode confrontá-lo com questões embaraçosas. E como as pessoas aí não podem (ou não devem andar à estalada) têm de comportar-se diplomáticamente. Mas Mugabe nesse tabuleiro não tem um único trunfo, do lado dele só se vê um urso com a bocarra, as garras, os dentes e a língua cheias de sangue pelos assassínios que tem cometido, pela destruição da economia, pela expropriação das terras aos brancos que alí vivem e trabalhavam pacíficamente - até este ditador resolver mudar de política e tomar aquelas atitudes de força que são conhecidas e que têm empobrecido o país e aumentado exponencialmente os seus níveis de insegurança.
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Na utilização dos recursos naturais
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Nas práticas governativas - que vivem da regra da corrupção e do nepotismo
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Da cleptocracia - que é uma resultante natural das condições precedentes
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Do desrespeito global pelos direitos políticos, cívicos, sociais das oposições
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Da pobreza endémica e das doenças que matam aos milhares de pessoas por dia
Enfim, dum conjunto multivariado de factores que empobrecem ainda mais aquele velho continente - esquecido.
Por outro lado, e aproveitando aqui algumas "deixas" do artigo infra do António Vitorino, o risco de se falar no Acordo de Lisboa - que será um contrato interessante de seguir - reside na eventualidade de se perder a percepção clara do significado do processo. Ou seja, qual é, de facto, o significado do contrato para tornar mais fácil a transição para uma governação global efectiva - com inversão global daquelas práticas (corrupção, nepotismo, cleptocracia) que hoje, infelizmente, fazem a regra da governação em África.
Mas para respondermos a este complexo de questões teremos, primeiramente, de descodificar o que é isso da governação global efectiva para África que, presumo, integrará a filosofia do Plano de Acção que reforçará e "regulamentará" a Declaração de Lisboa.
Na prática, esse modelo de governação global efectivo constitui um sistema que, dirigido por pessoas e instituições, segundo regras e mecanismos aceites por todos, garantirá que todos os mecanismos e dispositivos de acção nele previstos contribuam para favorecer as condições de vida das sociedades e dos povos africanos.
Como? Na utilização dos recursos naturais, na solidariedade social entre os diversos grupos, na promoção do desenvolvimento da identidade cultural, do diálogo e da integração, ou seja, nas questões vitais da Liberdade e Diversidade cultural de África.
Difícil será, porventura, envolver em igualdade de oportunidades as pessoas e grupos no sistema decisório, baseado numa comunicação e informação pluralista inspirada no interesse público que, em África, como bem sabemos, são os bolsos de cada ministro, cada um mais corrupto do que o outro. Angola, lamentavelmente, porque tem petróleo e riquezas naturais e uma elite governamental poderosamente corrupta, é um desses maus exemplos de esbulho governamental aos recursos naturais do país penalisando as respectivas populações que vivem na miséria, com menos de 1 dólar por dia, gente extropiada da guerra, com sida, subnutrida, analfabeta, sem nenhuma esperança de vida.
Neste quadro miserável o José Eduardo dos Santos, o Zé-Du - para os amigos - ainda tem a lata de dizer que para o ano talvez decorram eleições. É isto a democracia à africana, sem rei nem roque, sem regra nem procedimento (essência da verdadeira democracia) - ou está depende exclusivamente da vontade do corrupto-mor que é o presidente. Infelizmente, esta análise pode ser transponível à generalidade dos cinquenta e tal Estados africanos de que se compõe o Continente.
Neste contexto em que decorre a Cimeira de Lisboa - e que no plano simbólico a cimeira UE/África é já uma vitória, diria que o contrato político de que África carece, na actual conjuntura, consiste em observar o tal modelo de governação global efectiva que se desdobra no seguinte:
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Numa Economia global eficiente
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Numa Justiça social universal
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Numa Liberdade e diversidade cultural
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E numa Democracia política efectiva.
Talvez sejam estes os ingredientes que realcem o carácter duplo do desafio enfrentado pela mudança em direcção a esse tal modelo de governação global efectivo - reflexo de uma nova organização política para África que hoje, à semelhança do resto do mundo, deverá viver um sistema mundial pós-Estados nações e post-capitalismo nacional.
Ou seja, do que África precisa é de compromissos fortes e altamente vigiados por períodos longos, visto que esse modelo de governação global tem um carácter duplo:
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1) Reorganizar o novo espaço socioeconómico e político no plano regional e internacional neste novo contexto de globalização - em que as vantagens comparativas estão fortemente condicionadas à abertura das fronteiras e da competitividade das economias nacionais no espaço global;
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2) E à forma como essas economias incipientes integram as leis do capitalismo global - em expansão - num sistema social, económico, político e cultural francamente mais pobre, logo assimetrico nessa luta desigual entre les uns et les autres.
Numa palavra diria que África tem necessidades urgentes, seja ao nível da existência, seja no plano socioeconómico, político e cultural. No plano da existência requer um bom sistema de alimentação, energia, habitação e saúde (que hoje manifestamente não tem); assim como não tem um sistema de educação, de liberdade, de segurança e de trabalho. Mas isto já nem a Europa tem, por ironia do destino...
Só que estas necessidades primárias têm, necessáriamente, de coexistir com um segundo tipo de necessidades que já não servem para matar a fome, salvar as pessoas das doenças, mas servem para transportar e informar as pessoas, dotá-las de modernos meios de comunicação, reforçar as condições de democracia, de identidade cultural e de solidariedade.
No fundo, África é um continente que carece de quase tudo, mormente boas práticas de governação, se estas vingarem tudo o mais fica facilitado. Portugal, na qualidade de presidente em exercício da UE, está fazendo a sua parte, caberá agora a África, aos seus governos e respectivas sociedades e elites, dar um sinal de que querem efectivamente mudar o estado de coisas em que estão.
A mudança social e política sempre foi um processo complexo, pressupõe que existam condições exógenas favoráveis (eis o que Portugal e a Europa estão fazendo na organização desta Cimeira, ajudando o Continente de "fora para dentro") mas caberá a África implementar um conjunto de vontades e de objectivos para que as sociedades e os povos desse Velho Continente (esquecido) consiga sair do pântano em que se encontra endémicamente há décadas e dar o salto para a modernidade e para o desenvolvimento sustentado.
Será que consegue!?
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