Indiferença à nossa própria ausência: evocação de Vergílio Ferreira e de Montaigne no átrio do Verão
Hoje, com Lisboa coberta pelo sol verónico, lembrei-me de Vergílio Ferreira passeando na Av. de Roma e do que ele dizia quando um de nós morre, tudo o mais permanece sereno e intacto, os mesmos autocarros, os mesmos carros, as mesmas fábricas, chaminés, poluições e ruídos. Isto convoca a noção de indiferença de nós mesmos perante o mundo do qual um dia deixaremos de integrar. Quando abandonarmos este "porto de abrigo", esta subjectividade, esta óptica que significa ler o mundo à medida de cada um, em função da magnitude da ilusão de cada qual, da imagem que, no fundo, conseguimos recriar das desgraças e virtudes que montamos, encenamos e destruimos quando o pano cai. Montaigne fala de morte e da ilusão do homem em não querer acreditar que é exactamente esta a ordem das coisas, sempre balizada na última hora que nunca sabemos quando é. Mas aquilo que desejaria sublinhar neste autor e pensador é que vivemos uma permanente esperança ilusória assente em nós ao considerarmo-nos demasiado importantes e, na realidade, não somos. Façamos dois miseráveis testes para corroborar aquele ponto: 1. Não conseguimos imaginar que as coisas continuem a existir indiferentemente a existir sem nós, ou seja, que não sofram a nossa ausência; 2. Experimente-se morrer para ver se as coisas são, ou não são, de facto, assim. Nada pára, excepto o batimento do nosso coração. E mesmo quando a existência privada escapa ao abismo desse naufrágio da existência, restam sempre grandes abismos: o do Estado, o do mundo, o da vida e o mais que, por vezes, também não tem "coração".
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