terça-feira

O liquidatário do Império soviético: Yeltsin morre aos 76 anos

A história do séc. XX está definitivamente a morrer. A história dos impérios, que remontava ao séc. XIX, começa a perder as suas referências vivas, e Yeltsin era ainda, menos mal, uma dessas imagens do séc. XX, apesar de ter sido o liquidatário soviético dos czares depois de quase 80 anos de império. Aqui a singularidade prendeu-se com o tipo de funeral político que foi conseguido: sem sangue, sem guerra civil, mas o custo social foi tremendo e saldou-se numa sociedade que entrou numa pobreza aguda, numa corrupção sem precedentes, agravada com a turbulência das mafias - que passaram a vender as armas - da Guerra Fria - ao resto do mundo, tudo isso armadilhou o ritmo normal das reformas democráticas e potenciou as guerrilhas regionais, designadamente na Chechénia e na Bielorússia.
Foi assim de 1991 a 1999, durante esses oito anos Yeltsin, com as suas peculiaridades publicamente conhecidas, tentou fazer a transição para a democracia, preparando o terreno para o seu sucessor, o actual presidente russo, V. Putin, eleito em 2000.
Quando hoje se faz o balanço dessa década, rica em acontecimentos e transformações descontroladas (sinal da globalização errática e perigosa que vivemos), Yeltsin só se questiona - como o fazia em vida - da decisão de entrar em guerra com a república rebelde da Chechénia, aqui foi uma tragédia pela número de vítimas, pela incapacidade estratégica na sua conclusão e pelo ambiente de terrorismo de Estado que criou na relação da Rússia com as repúblicas circundantes ao velho império. Tudo com o mundo a assistir e a CNN a reportar em directo.
Depois o problema com o alcóol que o incapacitava de se lembrar das palavras, dos discursos, enfim, de ser normal em público, e não apalpar o rabo às secretárias e de tropeçar e cair vezes sem conta diante do público que assistia aos efeitos tropegos do Vodka naquele calmeirão. Beber não poderia ser a forma de resistir ao stress (como dizia..), senão todos os políticos eram alcoólicos, e logo que acordava ainda ressacava da véspera. Por vezes, ocorria que nesse dia tinha de visitar um corpo de bombeiros ou confraternizar com uma banda e revelava-se o actor mais desastrado do espectáculo. Era o herdeiro do velho império que estava alí, completamente embriagado ridicularizando o Estado, a sociedade e toda uma memória e tradições imperiais. Foi ridículo e achincalhador para toda essa memória de grandeza que Yeltsin nunca soubera preservar. Até em visitas oficiais ao estrangeiro, a garrafa de Vodka ía sempre.E, claro está, os efeitos secundários também...
Mas a forma súbita como a ex-URSS desapareceu da cena estratégica mundial foi um acontecimento favorável a toda a conjuntura. Apesar do vazio geopolítico que deixou, com o seu espaço de influência agora fragmentado em múltiplos centros de poder locais, com dificuldades de gestão adicionais derivadas da mistura do caldeirão étnico que vem dos tempos imperiais. Foi, portanto, uma fase de turbulência política e militar durante essa década, apesar dessa conflitualidade se ter mantido circunscrita, e não se difundiu à escala regional ou global. O que, a acontecer, seria uma 2ª Guerra Fria ainda mais perigosa pela facilidade com que as armas passaram a ser vendidas pelos grupos mafiosos que disso fizeram um negócio.
Depois a incapacidade de integrar a economia da Rússia no sistema económico internacional foi outro drama. Os efeitos a longo prazo da economia de planeamento central e de interferência sistemática do Estado, não desapareceram com a mesma rapidez com que se mudou as roupagens do sistema político. A esta luz, a evolução da trajectória da Rússia não foi mais do que uma sucessão de vazios: o vazio geopolítico, o vazio económico e esse drama significou uma dificuldade intrínseca de natureza estrutural que instabilizou toda a sociedade e a desejada modernização e desenvolvimento. Isto foi dramático para a economia russa que nunca se conseguiu integrar na economia mundial, razão por que a Rússia de Putin passou a representar uma ameaça persistente ao sistema internacional post-Guerra Fria.
Vejamos um exemplo caricato mas ao mesmo tempo sintomático desse estado geral de corrupção das almas e dos costumes a que chegou a sociedade russa: qualquer rapariga se deixava prostituir ante a promessa de oferta de uma caixa de pastilhas, de uma peça de roupa de marca (ou não) proveniente do Ocidente.
Com a economia desregulada, com uma inflação galopante, os preços em carrossel, com uma classe média verdadeiramente miserável - à brasileira - mas sem o clima e o estado de espírito e o samba, o futebol e o carnaval a ajudar, a sociedade russa perguntou-se para que se fez essa transição do império para a democracia... As filas para o pão, para a carne continuaram, com a agravante de Yeltsin - apesar da Liberdade - o Estado ter saldado aos grupos mafiosos ligados à economia pesada a maior parte dos sectores de ponta da economia russa.
Foi neste quadro complexo em que a mudança de estatuto geopolítico se mistura com a degração de todo o sistema económico, que a sociedade se interrogou que tipo de poder político se poderia estabelecer e consolidar naquele imenso e poderoso país com tradições imperiais. Tudo isso numa estrutura política pesada, com cerca de 90 entidades federais, que têm misturas étnicas e religiosas de difícil gestão e que tem fronteiras instáveis no contacto com regiões que antes estiveram dentro da sua área de influência política directa. Era como se, em pouco tempo, fossem os filhos que começassem a mandar na casa ainda habitada pelos pais. É óbvio que os conflitos tinham que emergir e multiplicar-se.
Nem sempre a história dos impérios termina bem. Será, por exemplo, que Portugal já fez a sua descolonização cultural?!