domingo

Combate à pobreza extrema, causa de todos - por Rui Flores -

(Expre. ass.)
ILUSTRAÇÃO FILIPE ABRANCHES
Ao ler este artigo, numa esplanada de Lisboa, num café do Porto ou num jardim de Coimbra, é quase impossível sentir, cheirar, ou compreender o que é a pobreza extrema. Ela aparece fugazmente nos telejornais, à hora do jantar, num dia em que mais uma desgraça afectou os mais pobres dos pobres - um tsunami; um «ferry» sobrelotado que se vira; a cheia de um rio que dizima a produção agrícola de todo um ano... São instantes tão curtos que não nos deixam perceber com nitidez o quadro geral. (link)
Viver em pobreza extrema é, por exemplo, habitar numa aldeia isolada do distrito de Koinadugu, no Norte da Serra Leoa, a mais de 300 quilómetros da capital, Freetown. É ter seis filhos - mesmo que a política governamental de planeamento familiar fosse efectiva, a distribuição de preservativos não chega aqui - que passam o dia na rua; o de 10 anos, com o mais novo, de oito meses, às costas. Três em cada 10 crianças morrem antes de completar cinco anos de idade.
É ter 35 anos e parece ter mais de 50, num país em que esperança média de vida não chega aos 49. É cozinhar a única refeição do dia, trinca de arroz, ao ar livre, fazendo lume com lenha. É viver sem electricidade. É não ter água canalizada - para se aceder à água, as crianças e as mulheres andam todos os dias mais de três quilómetros até ao riacho mais próximo, onde se banham e lavam a roupa; de volta à aldeia, trazem à cabeça baldes e garrafões com água para beber e cozinhar.
É ter-se como casa paredes de barro e telhado de colmo, sem quase nada lá dentro - colchão de palha sobre o chão de terra e duas cadeiras de plástico. É não ter acesso a educação ou a serviços de saúde. É ficar isolado semanas a fio na época das chuvas, quando o caminho de terra que liga a aldeia à povoação mais próxima fica intransitável. É procurar casar a filha aos 12 anos para se livrar de uma boca para alimentar. É não opor-se às cerimónias de iniciação das sociedades secretas que praticam a mutilação genital das pré-adolescentes. É viver com apenas 70 cêntimos de euro por dia.
É assim que se sobrevive em Koinadugu. Não é muito diferente de se sobreviver em Gabú, na Guiné-Bissau, ou em Viqueque, em Timor-Leste; dois exemplos mais ‘próximos’ de Portugal.
Mas, apesar de tudo, ainda há esperança. Na Serra Leoa, mais de 2,6 milhões de pessoas acabam de se recensear para participar nas eleições presidenciais e parlamentares de Julho - o que significa que 91% da população com mais de 18 anos se registou. E 49% são mulheres.
O combate à pobreza extrema é um dos objectivos de desenvolvimento do milénio das Nações Unidas, que visa reduzir para metade, até 2015, o número de pessoas a viver nestas condições. Deve ser uma causa transnacional. Os povos a sul da Europa não podem continuar a ser vistos como aqueles seres lá longe, que têm de resolver por si próprios os seus problemas. A questão não pode apenas ser vista como de solidariedade. Trata-se da nossa sobrevivência colectiva. O que as conclusões do recente relatório das Nações Unidas sobre o Aquecimento Global vieram mais uma vez dizer é que todos temos de contribuir para a solução, de forma a que os nossos netos possam vir a crescer num mundo relativamente parecido com aquele que herdámos dos nossos avós - com quatro estações do ano, por exemplo.
Significa também que os países desenvolvidos têm de dedicar uma percentagem cada vez maior dos seus orçamentos à cooperação internacional. Não é mais admissível que o enfoque nas questões do ambiente continue centrado nos países mais industrializados, esquecendo-se que grande parte do terceiro mundo vai devastando as suas florestas, afectando em larga escala todo o ecossistema. Nas cidades, face à proliferação de geradores de corrente eléctrica (por ausência de rede pública) o ambiente é muito poluído, devido à brutal quantidade de monóxido de carbono libertada para a atmosfera.
É evidente que os países em desenvolvimento não conseguirão por si só dar resposta a estes problemas. A estrutura do Estado é geralmente fraca, faltam recursos humanos qualificados e fundos.
Mas é também claro que, se não insistirmos em apresentar uma solução global, iremos todos sofrer com as consequências. Para desgraça, sobretudo dos tais pobres dos mais pobres, que, então, voltarão a ser notícia, à hora do jantar.
Assessor político ONU - Serra Leoa