Regresso a Milan Kundera e A Insustentável Leveza do Ser...
Milan Kundera, ILS, Quinta Parte - O Peso e a Leveza, Capít. 9.
9
"Quando os amigos lhe perguntavam quantas mulheres tinha tido, respondia de forma evasiva e, se insistiam em saber, dizia:
- Mais ou menos duzentas. Os invejosos afirmavam que estava a exagerar com certeza. Defendia‑se, dizendo: Nem tanto como isso. Tenho relações com mulheres mais ou menos há vinte e cinco anos. Ora experimentem a dividir duzentos por vinte e cinco. Hão‑de ver que dá mais ou menos oito mulheres novas por ano. Não são assim tantas.
Mas, desde que vivia com Tereza, a sua actividade erótica esbarrava com várias dificuldades de organização; não lhe podia reservar senão uma estreita faixa de tempo (entre a sala de operações e a chegada a casa) que, embora explorada intensivamente (como o montanhês faz com a sua estreita parcela), estava longe de poder comparar‑se com o espaço de dezasseis horas com que subitamente se via presenteado. (E digo dezasseis porque mesmo as oito horas que passava a lavar vidros lhe ofereciam mil e uma oportunidades de fazer novos conhecimentos com empregadas de balcão, caixeiras ou donas de casa e de marcar encontros com elas.)
O que procurava em todas essas mulheres? O que é que o atraía? O amor físico não é sempre a eterna repetição do mesmo?
De forma nenhuma. Há sempre uma pequena percentagem deinimaginável. Quando via uma mulher vestida, embora, evidentemente, pudesse fazer mais ou menos uma ideia de como seria depois de despida (aqui a sua experiência de médico completava a do amante), restava sempre um pequeno intervalo de inimaginável entre a inexactidão da ideia e a precisão da realidade, e era precisamente essa lacuna que lhe tirava o sossego. E, depois, a busca do inimaginável não termina com a descoberta da nudez; vai para além dela: que caras fará enquanto se despe? o que dirá enquanto faz amor? em que tom suspirará? que ritmo se imprimirá no seu rosto no momento da volúpia?
O que o eu tem de único encontra‑se precisamente naquilo que o ser humano tem de inimaginável. Só consegue imaginar‑se o que é idêntico em todos, o que é comum a todos. O eu individual é aquilo que se distingue do geral, e é, portanto, aquilo que não pode ser adivinhado nem calculado antecipadamente, aquilo que primeiro é preciso desvendar, descobrir, conquistar no outro.
Tomas, que nos últimos dez anos da sua actividade profissional se ocupara exclusivamente do cérebro, sabia que nada é mais difícil de distinguir do que o eu. Entre Hitler e Einstein ou entre Brejnev e Soljenitsyne há muito mais semelhanças do que diferenças. Dizendo‑o por números, entre eles há um milionésimo de diferente e novecentos e noventa e nove mil novecentos e noventa e nove milionésimos de semelhante.
Tomas vivia obcecado pelo desejo de descobrir esse milionésimo e de apoderar‑se dele, e esse era o sentido que dava à sua obsessão por mulheres. Não vivia obcecado pelas mulheres, vivia era obcecado pelo que cada uma delas tem de inimaginável ou, por outras palavras, vivia obcecado por esse milionésimo de diferente que faz com que uma mulher se distinga das outras.
(Talvez fosse aí que a sua paixão de cirurgião se encontrava com a sua paixão de sedutor. Nunca largava o seu bisturi imaginário, mesmo quando estava com as amantes. Desejava apoderar‑se de qualquer coisa que estava profundamente enterrado nelas e por causa da qual tinha de rasgar os seus invólucros superficiais.)
Claro que temos o direito de perguntar por que é que era na sexualidade que ia procurar esse milionésimo de diferente. Não poderia antes encontrá‑lo, por exemplo, na maneira de andar, nos gostos culinários ou nas preferências estéticas de cada uma?
O milionésimo de diferente está presente em todos os aspectos da vida humana, mas é publicamente desvendado em todo o lado, não precisa de ser descoberto, não é preciso nenhum bisturi para chegar a ele. O facto de uma mulher gostar mais de queijo do que de doces e de outra detestar couve‑flor é com certeza um sintoma de originalidade, mas também se torna imediatamente evidente que essa originalidade é insignificante e vã e que não seria senão uma perda de tempo alguém interessar‑se por ela e conferir‑lhe algum valor.
Só na sexualidade é que o milionésimo de diferente aparece como uma coisa preciosa, porque não é publicamente acessível e tem de ser conquistado. Ainda há meio século, este tipo de conquista exigia que se lhe dedicasse muito tempo (várias semanas e, às vezes, alguns meses) e o valor do objecto conquistado era proporcional ao tempo consagrado à sua conquista. Mesmo nos dias que correm, embora o tempo da conquista tenha diminuído consideravelmente, a sexualidade é para nós como que o cofrezinho das jóias onde se encontra guardado o mistério do eu feminino.
Não era, portanto, de forma nenhuma, o desejo da volúpia (a volúpia aparecia por assim dizer como brinde), mas o desejo de apoderar‑se do mundo (de abrir com o bisturi o corpo jazente do mundo) que o fazia andar atrás das mulheres. "
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