sábado

O regresso da Rússia - por - António Vitorino

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(in DN), o sublinhado é do Macroscópio
"Na semana passada, dois acontecimentos da maior relevância futura ocorreram nas relações entre a Europa e a Rússia. Nos primeiros dias, de forma discreta, o website da Gazprom anunciava que todas as empresas estrangeiras haviam sido eliminadas como parceiros potenciais do projecto de exploração das reservas de gás de Shtokman (pondo assim termo às aspirações de cinco empresas americanas, norueguesas e francesas).
Dois dias depois, o Presidente russo, Vladimir Putin, deslocava-se a Dresden, na Alemanha, para um encontro com a chanceler Angela Merkel, onde saudou a nova ostpolitik que o Governo alemão preconiza para a definição das relações entre a União Europeia e a Rússia. A primeira decisão tem um significado político inequívoco: a partir de agora findam as especulações sobre se a prioridade russa seria dirigir a produção de gás de Shtokman para o Ocidente ou para o Leste, visando a China e a costa oriental dos EUA.
O beneficiário desta decisão será, pois, inequivocamente o pipeline do mar Báltico e a garantia de abastecimento de gás russo à Europa, conferindo à Alemanha um papel central não apenas na relação com a Rússia como na definição da arquitectura energética europeia no seu conjunto. A Gazprom confirma desta forma que nos seus projectos de expansão o mercado europeu passa a ser a primeira prioridade, reforçando um partenariado com interesses alemães que não deixará de produzir os seus efeitos quando Bruxelas tiver que definir as condições de entrada do gás russo no mercado europeu.
Ao mesmo tempo, esta decisão, obviamente endossada pelo Kremlin, constitui um sinal da degradação das relações políticas e económicas entre a Rússia e os Estados Unidos da América, designadamente depois das condições duras impostas por Washington nas negociações de acesso da Rússia à Organização Mundial de Comércio. Mas o tema energético marca de forma muito evidente a reentrada da Rússia como superpotência no quadro internacional. Aproveitando a alta dos preços e a percepção de quebras no aprovisionamento energético a prazo, a Rússia usou a "janela de oportunidade" das garantias de aprovisionamento energético num mundo dependente e globalizado para tirar partido das suas vantagens geográficas e do seu potencial de recursos naturais.
Se é verdade que o produto interno russo só para o ano voltará a estar ao nível do ano do colapso da União Soviética (1991), não é menos verdade que o crescimento induzido pela alta dos preços da energia nestes últimos dois anos permitiram à Duma aprovar orçamentos que assinalam crescimentos recordes da despesa (40% em 2006 e 28% em 2007, prevendo que para o ano o preço do barril de crude dos Urales se situará em média nos 61 dólares americanos). Esta decisão terá decerto influência nas eleições russas do próximo ano...
O mundo em geral, e a Europa em particular, vai assim ter que lidar com uma Federação Russa segura de si própria, capaz de potenciar as suas vantagens comparativas e interessada em fazer respeitar o seu estatuto recuperado de potência com vocação global.
A Rússia sabe que as potências ocidentais, especialmente os Estados Unidos, precisam do seu contributo para lidar com a crise da Coreia do Norte e do Irão, para conduzir a luta contra o terrorismo (onde a experiência e as informações recolhidas nas zonas de dominância muçulmana do Sul do país se têm provado de grande utilidade global), para desenvolver uma estratégia concertada no Médio Oriente, para garantir a segurança do abastecimento energético num mundo onde a luta por fontes de energia com as potências emergentes (China e Índia) constitui a grande marca deste início do século XXI.
Para tanto exige ser tratada não como um parceiro menor, mas como uma superpotência que lida com os demais poderes globais de igual para igual. Nesta estratégia de afirmação internacional, a Rússia pretende ver reconhecida a sua liberdade de lidar com os seus problemas internos sem ingerências (a Chechénia, a afirmação de um capitalismo de Estado na formação de 12 grandes campeões nacionais em tantos outros sectores vitais para a economia russa, uma crescente onda xenófoba contra os não russos e os não cristãos e um acelerado declínio da sua base populacional), mas ao mesmo tempo pretende beneficiar de transferências de tecnologia e de apoios na qualificação profissional e educacional dos seus cidadãos, para o que a presença de empresas estrangeiras será sempre fundamental e imprescindível. A bola está, pois, no campo da União Europeia e a cimeira UE-Rússia do ano que vem terá lugar sob presidência portuguesa!"

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Notas Macroscópicas
António Vitorino não nos deixa um artigo, mas sim um ensaio sob a forma de artigo. É tanta informação e as suas implicações que precisa de tempo para ser digerida e analisada. Pelo menos sempre é melhor que o regresso da Rússia ocorra pela via económica do que pela via das armas nucleares com Nikita a esfolar sapatos na banca de mármore da ONU. Como era apanágio da Guerra Fria. Pensando bem, até parece que a Rússia nunca foi comunista, mas sempre foi "capitalista e liberal" e hoje cada vez mais "neoliberal". Mas faz isso tudo sob o comando apertado do Estado, logo é um capitalismo de Estado, intervencionista, regulagor quase autocrático.
Talvez não será exagero afirmar que o abastecimento fiável e barato de petróleo e gás natural está na base de tudo aquilo que identificamos como vantagens da vida moderna. Mas o mais curioso é que, doravante, com este "regresso da Rússia" à sua vocação Continental e global, é que todas as necessidades, todo o luxo e conforto, o ar condicionado, o aquecedor, os transportes - do carro ao avião - a iluminação eléctrica do Natal, a defesa nacional e até as próteses da anca e sabe-se lá que mais - directa ou indirectamente - devem a sua origem aos velhinhos combustíveis fósseis baratos. A Rússia está aí, anda por aí... Veio para ficar. O que é a China ao pé disto?