segunda-feira

O Papa, a carta: intenção do autor, intenção da operação e intenção do leitor

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Imagine que é o Zaramago, escritor espanhol que faz umas incursões a Portugal para aí receber os direitos de autor e ficar com mais umas massas. Um dia, sem o saber, sem o merecer e para estupefacção de 99% da humanidade, recebe um prémio Nobel e, assim, nobiliza-se aos olhos do mundo.
Imagine agora que há uma imensão multidão de pessoas que não gosta dele, outros que o detestam e outros ainda que prometeram a Cristo que se o vissem o apedrejariam.
Depois imagine que a caixa de correio de Zaramago é inundada com cartas indesejáveis. E no meio de tanta confusão, uma se destaca e diz o seguinte:
  • "Ó Zaramago, desde que escreves só contribuiste para estimular uma guerra de nervos em Portugal, que te acolheu, e onde eras marceneiro em tenra idade, tal como Jesus Cristo. Depois, mendigaste um prato de lentilhas e lá arranjaste o prémio do inventor do dinamite, esse tal Alfred Nobel. Parece que todas as conquistas literárias que consegues impelem o teu País à guerra de nervos. Continuas a gostar de Cuba, veneras, à sucapa, o ditador trôpego da ilha que desconhece o verdadeiro valor da palavra DEMOCRACIA e LIBERDADE e mata e manda matar por delito de opinião, e ainda metes os teus vizinhos de ofício à bulha, qui ça por saberem que são melhores do que tu à vista desarmada. Que mundo é este, Portugal, que não pões cobro a isto?! Será que teremos de ser fortes à força?!"

Agora faça outro exercício, articulado com aquele, para situar umas declarações do ex-Presidente dos EUA, Ronald Reagan. Que aos microfones de uma conferência de imprensa, disse - mais ou menos o seguinte:

  • "Daqui a poucos minutos darei ordens de bombardear a Rússia".

Se os textos dizem alguma coisa, aquele texto dizia exactamente que o seu enunciador (R. Reagan), num curto espaço de tempo subsequente áquela conferência, ordenaria que mísseis atómicos fossem disparados contra os territórios da então ex-URSS.

Depois, pressionado pelos jornalistas, Reagan lá admitiu que estava a brincar: dissera aquela frase mas não tinha pretendido dizer o que ela significava. Tal como na carta de cima, que alguns leitores enviaram a Zaramago. Em que um daqueles leitores - que o "adora" - dizia: se o visse na rua apedrejá-lo-ía. Ora também neste caso - a letra do texto não correspondia à realidade para que a expressão remetia. Mesmo que lhe batesse na cabeça com um pau preto para ver se aprendia a escrever. Ora nem isto nem uma pedrada se fazem... Hoje também já não se matam andorinhas de flober, só para testar a pontaria.

Desse modo, qualquer destinatário que tivesse acreditado que a intentio auctoris (intenção do autor) coincidisse com a intentio operis - seria iludido ou enganado.

Resultado: Reagan foi criticado, não só porque dissera o que não pretendia dizer, pois um Presidente dos EUA não pode dar-se ao luxo de fazer jogos de enunciação (que amadores repetem noutros contextos), mas, sobretudo, porque, como se insinuou, que delineara a possibilidade de enviar os tais mísseis para a ex-URSS. Recordemo-nos que na altura o mundo vivia o clima de Guerra Fria, e isso queria dizer, em boa medida, que se pretendia apagar fogos com gasolina de avião, com muitas octanas. É claro que o resultado seria desastroso.

Todos nós, um dia, também já recebemos cartas estúpidas, na letra e no espírito. Estúpidas porque deslocadas, descontextualizadas, desproporcionadas e, não raro, copiadas ou substancialmente trânscritas de uma qualquer revista de cordel cuja fonte foi propositadamente omitida. E em certos casos até é um favor, dada a dimensão alarvidade.

Atente-se agora num conjunto de três variáveis que se tem (ou deve) ter em conta quando se escreve uma carta a alguém, por mais estúpida e desadequada que seja, seguindo os limites da interpretação do nosso amigo U. Eco: a intenção do autor (intentio auctoris), a intenção da mensagem (intentio operis) e a intenção do leitor (intentio lectoris).

Assim se consegue identificar duas coisas essenciais:

a) O infinito dos sentidos que o autor introduziu no texto b) E o infinito dos sentidos que o autor ignorou ou não tomou em conta - no referido texto.

Porque pensou que provavelmente eles seriam introduzidos pelo destinatário, mas sem que diga ainda se em consequência ou apesar da intentio operis, ou seja, da intenção da mensagem presente no texto/carta.

Por exemplo, no caso de R. Reagan, que ganhou brutalmente a Guerra Fria e obrigou a ex-URRS a ajoelhar-se perante o mundo. Fazendo-a perder o estatuto de hiper-potência mundial que manteve durante meio século desde que Stalin se impôs ao mundo, em particular a toda a Europa Central e de Leste. Convém, agora, apresentar as múltiplas possibilidades interpretativas resultante das suas declarações.

Mas quem fala nas declarações toscas de Reagan - também poderia evocar milhentas outras situações, como as declarações de Barroso ao país e dias depois abandonou-o; as promessas de Lopes e depois queimou a imagem externa do país (neste caso também ninguém acreditou nas suas promessas e o poder foi-lhe transmitido, muito curiosamente, de forma monárquica por um ex-maoista); e também as recentes declarações do Papa Bento XVI a propósito da cristandade e do islão. Sucede aos mais cultos... Embora aqui houvesse talvez um interesse doloso nessa distorção, porque seria ela que serviria de pretexto, como se verificou horas depois, para que alguns radicais islâmicos mundo fora assassinarem freiras e pessoas inocentes ligadas à religião cristã de que Bento XVI é o Supremo Pontífice.

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Conclusão: evocámos aqui estes procedimentos porque por vezes as palavras parecem pedras, às vezes balas dado que chegam mesmo a morrer pessoas inocentes por via dessas distorções, omissões e metáforas assassinas que fazem hoje o nosso mortífero mundo. Sabemos bem como entre o Ocidente e o Oriente, o mundo Cristão e o universo Islâmico as cosmovisões são distintas, logo as representações mentais e as intenções das pessoas também diferem entre si. Ora, no caso das recentes declarações do Papa - o homem não teve nenhuma intenção em desencadear um conflito religioso entre esses dois mundos, mas o fanatismo islâmico, o tal que interpreta o Al Corão com as armas à cintura sempre disposto a matar e a fazer da morte um método político para a acção - quis interpretar assim aquelas palavras do Papa Bento XVI. Creio que em circunstâncias normais os agentes do islão jamais interpretariam aquelas palavras daquela forma (abusiva), a não ser que as suas verdadeiras intenções fossem, à priori, eivadas duma sede de sangue, porque dinamizadas por uma tal carga de emotividade passional que faz com que diante certas palavras o outro lado responda ao tiro e à bomba. Isto revela bem o fosso que existe entre "nós" e "eles", sem com isto querer (re)criar uma fortaleza cultural artificial que dificulte o relacionamento entre os Estados, os povos e as pessoas.

  • Post dedicado às vítimas do fanatismo religioso vindo de gente que interpreta dolosamente o Al Corão com o pretexto de poder atacar o Ocidente. Essa gente não merece o O2 que respira... Agradecemos também ao blog Websemantic (e parceiro) as pistas que nos tem dado nesta área da interpretação - ajudando-nos a ver o invisível no limite dos céus.