sexta-feira

Evocar grandes homens do nosso tempo: Sérgio Vieira de Melo

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O ser humano tem uma tendência natural para não se condoer com a morte daqueles que não conhece pessoalmente. Mesmo dos familiares e amigos o tempo passa e a morte acaba por integrar a rotina, mas no caso particular de Sérgio Vieira de Melo a excepção avulta, e como amanhã perfaz 3 anos após a sua morte, é com imenso respeito que aqui evocamos esse brasileiro de valor universal e que tanto fez pela reconstrução de Timor-leste... Sérgio era também o símbolo do homem competente, trabalhador e discreto, cujo modelo parece contrariar os homens que hoje se impõem na sociedade e na política - que são incompetentes, espalhafatosos e soberbos. O seu exemplo e o seu legado ficarão como fonte de conhecimento e de inspiração para as gerações vindouras. Republicamos aqui um texto já antigo mas que o tempo não apaga, pelo menos enquanto houver memória e boa vontade. Esta reflexão é-lhe inteiramente dedicada a fim de perpetuar a sua memória. Afinal, há homens que morrem (físicamente) mas estão sempre vivos..
O quadro sucessivo de imagens externas a que chamamos mundo tem sido uma desgraça pegada. Dentro e fora de portas. Parece que T. Hobbes, que nada percebia de incêndios muito menos de terrorismo, tinha razão: o homem é o lobo do homem. E nós, humanidade, não conseguimos desfazer esse nó górdio da existência. Por isso nos continuamos a matar barbaramente. O ataque terrorista à ONU em Bagdad, que vitimou Sérgio Vieira de Melo (SVM) mais duas dezenas de funcionários da Organização no Iraque, foi uma versão terrestre do 11 de Setembro em N.Y. Tragicamente, a história é conhecida nos dois lados. Os métodos, as motivações e as consequências também.
Além do drama pessoal que qualquer morte provoca, parece que o estado actual da situação política e económica do mundo, com toda a sua duplicidade, cheia de sucessos e falhanços, encerra um mistério. Pois à medida que o sistema económico se desenvolve, cada vez fica mais claro que a raiz última dos problemas políticos, económicos e militares é “religiosa” A economia e a política não passam de uma manifestação do drama original do ser humano. Afinal O Verbo estava no mundo e o mundo foi feito por meio d’Ele, mas o mundo não O reconheceu. Veio para o que era seu e os seus não o receberam (Livro de Job). A invocação deste livro bíblico invoca o nível de rectidão moral vertido na vida de SVM. Homem enérgico, corajoso e determinado, Sérgio só acolhia causas difíceis capazes de coadjuvar na reconstrução de nações devastadas por guerras civis. No Kosovo ajudou a pacificar uma região mutilada por ódios étnicos; depois fez obra em Timor Leste, refazendo os cacos duma nação reconciliando-a com a história através duma administração eleita. Já antes o diplomata tinha trabalhado com refugiados e fez-se notar em Genebra na Comissão dos Direitos Humanos da ONU. Era uma esperança para a futura liderança da ONU, e Kofi Annan sabia-o. No Iraque coordenava todas as operações das Nações Unidas, em especial as de carácter humanitário. Aquando da tomada de posse da administração iraquiana, foi ele que deu uma palavra de esperança à Comunidade internacional, antes do próprio Conselho de Segurança o fazer formalmente. Além da sua competência e faro político, era um homem adorável, encantador e gracioso deixando um lastro de amigos em todos os cantos do mundo. Por isso a sua morte nos chocou a todos.
Mas Sérgio Vieira de Melo era mais do que um diplomata das “Necessidades”. Era um diamante em movimento, um sedutor na arte de argumentar (em várias línguas), um polarizador de charme e tinha, de facto, o íman e o carisma que potenciava a negociação sem negligenciar a prudência e a virtú dos filósofos do racionalismo moderno.
Era um “filho de Kant” na alta roda internacional que tinha a percepção que o maior fracasso da nossa época (é) a impossibilidade de compreender a ameaça que as violações flagrantes e sistemáticas dos direitos humanos representavam para a segurança das populações e do sistema internacional. Por isso defendia que as actuais “definições de segurança estão pouco adaptadas às realidades contemporâneas”, daí a urgência em situar “os direitos humanos no centro do debate” em vista a fortalecer o futuro da ONU. A seu tempo lamentou que o CS da ONU nunca se tivesse ocupado do Iraque, denunciando a ausência de democracia e as ondas de terror que grassavam no país, especialmente com os opositores políticos (reais e imaginários) e também pela brutalidade da violação dos direitos humanos e pela invasão dos países vizinhos.
Hoje, desgraçadamente, nem a ONU pode aspirar a um papel de árbitro. Washington reserva para si o direito de designar os seus adversários: os Estados párias e os países do Eixo do Mal. Então, o que terá falhado? Uma estratégia aplicada à espionagem para detectar e neutralizar as redes terroristas; mas também o emprego na acção militar para destruir os santuários dos terroristas e punir os Estados que os protejam. Estas duas actividades são tão essenciais para a vitória quanto a descoberta de cada grupo terrorista com alcance mundial.
Dos factos conhecidos, vejamos o que persiste além da sua obra? A prática da indivisibilidade de todos os direitos humanos (civis, políticos, económicos, sociais e culturais) e um melhor direito internacional na base das sociedades nacionais; o reforço da ética, fonte e exigência da legitimidade de todo o poder, daí a revisão da (conflitual) visão hobbesiana pela cosmovisão kantiana, mais voltada para a convivência do tecido social através da elaboração jurídico-diplomática dos direitos humanos como tema global, em boa medida reforçado pelas ONGs, actores importantes na hierarquia e agenda da ONU; e a percepção de um comum universal nas formas de ultrapassar concepções tradicionais de soberania.
Afinal, SVM conhecia as forças profundas que estão modelando o sistema internacional, função de interacção das lógicas de unificação e fragmentação e do risco e incerteza que comportam. Sabia que o equilíbrio político entre as duas lógicas só era alcançável pela tolerância e esta só se viabiliza pela associação positiva entre os direitos humanos e democracia, condição sine qua non da pax.
Além da convergência da Ética com a Política, a sua praxis politico-diplomática ficou também tributária da vida mundial e regional, pois a legitimidade dos Estados e das sociedades, o seu locus standi no plano diplomático, a sua credibilidade e o acesso à cooperação internacional, reforçam-se com a promoção daqueles direitos e sua protecção democrática. Por isso, democracia e direitos humanos, no plano doméstico, eram cartas do mesmo baralho que o “filho de kant” utilizava como um instrumento de soft power no plano internacional. No fundo, SVM era um filósofo na diplomacia, mas também um político na ONU a aguardar vez para se projectar em toda a sua plenitude. Sabia que na área dos direitos humanos, as construções internacionais existentes ultrapassaram as noções clássicas de soberania e interesses nacionais. Sabia, também, que no labirinto da história contemporânea, em que se multiplicam conflitos nacionalistas e interétnicos, o mundo se desseculariza, e o fundamentalismo (e o terrorismo) se espraiam.
Sabendo tudo isto, SVM não quis uma pesada segurança pessoal que só o afastaria das populações que deveria servir. Porém, sobre ele recaiu o efeito mais primitivo do “choque de civilizações”. Parece, maquiavelicamente, que a sua vida foi a prática daquela teoria. Foi, tragicamente e sob os escombros, um espectador do seu próprio destino.
Após a sua morte, a Comunidade internacional continua a ser, essencialmente, um conjunto de Estados que interagem, dentro e fora do direito, buscando o cosmopolitismo (kantiano) para construir uma verdadeira sociedade mundial. De facto, as nações já não convivem no medo do “estado de natureza” hobbesiano, mas o seu contrato social continua imperfeito e incoactivo.
A isto soma-se a ausência de um verdadeiro poder supranacional soberano autor da globalização feliz à escala mundial. Portanto, a conclusão a que chegamos, qui ça na companhia de SVM, só pode ser a seguinte: existem dois sistemas. Um velho, outro novo. Aquele é o portador do estado de natureza hobbesiano, feito de anarquia entre iguais e pelo despotismo entre desiguais, como hoje faz a Republica Imperial com sede na Casa Branca. Aí vemos o velho sistema dotado de efectividade, mas já falho de legitimidade; por contraponto, o novo sistema (kantiano) é legítimo, mas tem a sua efectividade amputada pela realidade dos factos.
A quadratura do círculo está, pois, no controle internacional dos direitos humanos, que ainda não constitui garantia, mas integra os ideais de Kant e faz parte do novo sistema que Vieira de Melo promovia no terreno onde morreu. Mas não era apenas na área dos direitos humanos que tal tendência se materializa, mas, sim, no fenómeno generalizado da globalização, propiciado pela revolução tecnológica, digitalização das sociedades e pela economia da modernidade. Bastava conceder aos Estados maior legitimidade, através do respeito de tais direitos, monitorados (agora) por órgãos competentes da Comunidade internacional.
SVM sabia tudo isso e muito mais. Era um cidadão do mundo e morreu (quase) como Sócrates. Sabia que só havia um caminho para superar a anomia internacional pós-guerra fria: ao princípio de igualdade de todos os Estados somava-se o reconhecimento crescente dos direitos humanos. É isso que permite falar na superação da anarquia sem incidir necessariamente na pax pelo império do Oncle Joe.
Tratava-se dum homem bom, inteligente e sensível que procurava devolver segurança e paz às populações. Numa entrevista à BBC, com uma rotação de raciocínio fulgurante, constatei que punha tudo o que era em tudo o que fazia. Dedicou-se, de facto, a construir uma “catedral” de direitos, mesmo quando apenas cumprimentava gente simples e esfomeada, sem tecto nem família. Mais do que um enviado de Kofi Annan, SVM era um mensageiro de Cristo que peregrinou na terra para ajudar o homem a ser menos imperfeito.
Antes de morrer, parece ter sugerido que tout est dangereux ici-bas, et tout est nécessaire. Até o Iraque. Tudo mostra que o homem leva uma vida dupla: uma concreta e uma abstracta. Naquela estamos abandonados a todas as tempestades da realidade, a sofrer, a morrer como um animal. Na outra, estamos acima de nós próprios, ante o esquema em miniatura do nosso trajecto de vida. O gap entre ambas diz-nos se somos alheios ou espectadores lúcidos do nosso próprio fim.
Por tudo isto, SVM ampliou o sinal kantiano do progresso da humanidade mostrando que Deus é brasileiro…, mesmo quando perde o Mundial de Futebol.
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