O grande Maimónides: a conciliação
Nestes dias, por força da estação primaveril e da celebração da morte de Jesus Cristo, temos falado sobre a origem de tudo isto. A religião nem sempre divide, mas pode dividir, pode até desencadear processos de combustão. Umas vezes lentos, outras mais aceleradamente, à velocidade da lux, como a chacina de Lisboa em 1506. A história dá disso conta. Mas esta relação do Cristianismo com a igreja e a fé, em lugar de clarificar posições, só exacerba as emoções e indispõe os homens - como vimos no último programa Prós & Contras. Só nos baralha ainda mais. O futuro político da Europa, o futuro de todos nós, não se resume aos casamentos pela igreja, e aos ditâmes desta sobre a própria organização da sociedade e até a moral da pessoa humana. Não fazemos aqui aquilo que à direita condenamos ao "papa" do BE - Anacleto Louçã; nem, pela via da esquerda, a redução do tema - o declínio da Europa - presente na lógica argumentativa e comunicacional expendida por César das Neves, docente de economia e pontualmente teólogo. A Europa política, cultural, social, económica e civilizacional é um "animal" bem mais poderoso e complexo do que saber se o aborto deve ou não ser legalizado, que foi a deriva para que descambou aquele programa. Com a cumplicidade tático-estratégica de Saraiva Martins... Também isto dá-nos que pensar. Será que alguém pensa... A igreja, mestre em oportunismos, veja-se a sua relação com a ditadura do velho "Botas", pretende sempre capitalizar e arregimentar mais umas alminhas para o seu rebanho, em geral pessoas simples, em dificuldades, dependentes, vulneráveis. Não era o caso de César das Neves, creio. Mas à medida que penetramos nos mistérios da religião, no sentido da Vida, no véu da morte, nas incertezas da nossa existência, escavamos ainda mais o tal paradoxo que o grande Maimónides nos legou. Falo de alguém que na tradição rabínica teve mais importância, logo depois do profeta Maomé, o qual gerou uma controvérsia tal que dilacerou os pensadores judeus da Idade Média. Mas se o invocamos aqui não é apenas pela tremenda autoridade dos seus escritos, em particular O Guia dos Perplexos, mas antes por ser uma espécie e Sócrates da Idade Média, um homem tremendamente sábio mas também humilde que aproximou de maneira decisiva os gregos dos hebreus, na convergência da influência da Razão com a Fé, e nesta com aquela, sem primazias, sem sobreposições, sem sectarismos nem fanatismos. Enquanto não entendermos estas coisa simples acabamos sempre com posições sectárias, beatas, monistas que, em geral, tendem a atribuir à igreja a soberania das decisões pessoais. Erradamente, é claro!!! Hoje, ninguém esclarecido, culto, com massa crítica entra num confessionário para se confessar a um padre, que pode não ser ou representar nada disso. Maimónides - que viveu no séc. XI, não aderiu ao dogma judaico da ressureição dos mortos, contentou-se em abordar a ressureição das almas. Pergunte-se ao padre da paróquia de cada um de nós se soube quem foi Maimónides. Mas o seu principal contributo, que hoje esquecemos, ou por simples ignorância ou por incapacidade de pensar e de relacionar os dados do problema, foi gerir essa grande controvérsia que dividiu o judaísmo e fracturou todo o Ocidente. Hoje, como então, esta contradição não tinha uma resolução fácil, pois a irrupção do racionalismo não "casava" bem num mundo dominado pelo pensamento mágico. Logo, a receita era desenvolver um permanente diálogo com todos os saberes e religiões. Mas a presciência deste sábio foi pensar que a palavra "lógica" - tinha um triplo significado: a própria faculdade racional do homem, a sua expressão interior e o seu discurso exterior. É essa tripla dimensão que nos permite perceber os dados do problema. Se não estivermos atentos acabamos por cair nas múltiplas armadilhas induzidas pelas falsas crenças, mais ou menos idolátricas. E é aqui que entra o Maimónides, qual Sócrates da filosofia, a fim de evitar tais perplexidades, é necessário uma formação preparatória que compreenda a tal lógica, a filosofia, a física (Espinosa via também Deus na Natureza), a matemática. E depois chegar à metafísica. Confesso que chegar ao apeadeiro da crise da Europa só por causa da fragmentação do núcleo da família tradicional - é curto, além de caricato. A Europa está em crise porque não tem projecto político, não tem liderança política, não afirmou um sonho plausível de ser sonhado, não formulou uma imagem de futuro. Não tem metáfora. E sem imagem vê-se perdida e cega ante uns EUA cada vez mais unilateralistas e um Oriente - China e Índia - cada vez mais pujantes - a crescer a mais de 10% ao ano - e mostrando à Humanidade que são esses dois colossos a "fábrica" e o "escritório" do mundo. Mas há ainda um aspecto escondido no pensamento de Maimónides - que tende a superar a tal contradição que vemos projectar-se na TV portuguesa entre a fé e a razão, que contrapõe a igreja e a sociedade, que artificializa conflitos em nome duma organização, duma estrutura de homens com anseio de poder que é a Igreja. Lembram-se do caso Galileu...Maimónides rompe, de facto, com essa fronteira terrível, essa armadilha e vínculo entre a fé e a razão - motorizadas pela igreja apenas para não perder parte do poder, autoridade e influência que tem. A Bíblia deixou de ser um atlas para os padres, uma ferramenta exclusiva da igreja, mas um livro sagrado para todos nós, amantes da História, o livro da fé em Deus. Ora foi este corte epistemológico que abriu o caminho para a ciência moderna, embora pelo meio a igreja se tenha portado muito mal. É certo que João Paulo II já pediu desculpa algumas vezes, mas tal não apaga toda a história de que foi autora, apenas a torna mais compreensiva ante a intolerância dos homens da igreja.Até o economista J. Maynard Keynes, pasme-se, reconheceu isto, ou seja, este génio da economia, que descobriu o efeito multiplicador que o Estado pode desempenhar no crescimento económico (de que hoje pouco vale..., como os tempos mudam e as teorias económicas se desactualizam!!!) descobriu - não a ideia - para rir - segundo a qual a Europa está em crise por causa do estilhaço da família tradicional - mas partilhou as preocupações do fundador da física moderna, Isaac Newton - que tinha como livro de cabeceira, precisamente - O Guia dos Perplexos de Maimónides. Que ficou conhecido como o baú de Newton.. Além de confrontar a teologia judaica e a filosofia grega, foi aí que o filósofo abordou novas concepções que conturbaram e rasgaram toda a paisagem cultural do Ocidente. A ideia e as categorias do simbólico, o antropocentrismo e teocentrismo, a Criação do mundo que levou Sir B. Russel a explicar-nos por que razão não era cristão, o sentido da profecia e da providência divina, a escatolgia, enfim, um conjunto de linhas e vectores de pensamento que nos ajudam a explicar hoje a crise da Europa. Uma crise que é eminentemente política, dado que o sistema de cultura do Ocidente já não consegue assegurar os factores de crescimento e de modernização social e económica que vinham de trás, durante meio século de Guerra Fria, em que tudo era previsível, até o perigo de guerra, e que hoje se soma à própria crise do nosso sistema psíquico. É aqui, a nosso ver, que reside o factor de empobrecimento estrutural da Europa política, social e cultural. Dito de outro modo, deixou de haver referências para o pensamento filosófico e a acção política, o homem deixou de ter um guia, uma lux que o guiasse com convicção. Deixámos, enquanto europeus e ocidentais, de ter o tal símbolo paterno, que é o tal elemento que introduz razão e ordem na vida psíquica. Eis o grande tributo deste médico e filósofo do séc. XI. Maimónides não faz senão questionar o nosso intelecto, nas suas várias relações com o mundo circudante, e também, naturalmente, diríamos nós, com a família. Portanto, o nosso problema, as razões do nosso declínio residem na (in)capacidade de produção de simbólico e de linguagem. E sem estas duas dimensões também não consguimos produzir ciência, desenvolvimento, modernidade, ter uma economia pujante, um sistema de justiça social que não envergonhe ninguém, um eficiente e humanista sistema de ensino, um aparelho cultural personalista. Se não conseguirmos assegurar a capacidade de produção desta teia de simbolismos, seja enquanto políticos, seja enquanto investigadores, pensadores ou filósofos, ou até enquanto padeiros ou pedreiros, então já não conseguimos garantir o tal padrão de crescimento mínimo que nos permite competir ao lado doutros sistemas culturais, concorrer com outras regiões do mundo em igualdade de circunstâncias. Aí sobrevém o declínio (interno), a decadência (externa) que hoje tão bem nos fotografa. Um declínio e uma decadência que, por sua vez, também rompe com o nosso imaginário, dado que nos rouba a "tal" capacidade de produzir imagens que nos fixam um futuro a seguir. E é aqui, e não na família, que não passa duma causa importante dessa crise mas de valor micro, que encontramos os verdadeiros fundamentos da tal crise de valores que hoje atravessa toda a Europa. E tal como a profecia pode desenvolver-se por uma função conjunta do simbolismo com o imaginário, do mesmo modo, o homem político pode - se tiver um sonho, um projecto e uma liderança credíveis (coisas que hoje manifestamente não tem, muito menos com Durão na Comissão Europeia) - agir por efeito de conjugação do imaginário com o real. É claro que Durão - mordomo-mor da Europa - não encarna esta capacidade, e o simbolismo dele é outro, que se traduz numa ambição desenfreada e nos honorários que recebe no final do mês - sem nenhuma contrapartida válida para o futuro do projecto europeu e, muito menos, para Portugal. Em suma: a Europa está em crise, para recuperar a concepção maimonidiana, por causa da fragmentação destas três categorias que deixaram de se conjugar no âmbito do pensamento e da práxis política europeia. A transição do século XX e a entrada do III milénio também não se fizeram acompanhar da produção daquelas categorias: o simbólico, o imaginário e o real. Sendo certo que o homem só consegue produzir realidade, ou seja, "comprar futuro" mediante a conjunção do simbólico com o imaginário. Pois é desta conjunção que o homem se permite - enquanto "sujeito" autor da história - que pensa e age na polis global - alcançar o real, o conhecimento de Deus, tendo como consequência o próprio conhecimento da verdade moral, e até política, de uma determinada conjuntura, país ou sociedade. Eis a razão por que recorremos aqui ao legado do grande Maimónides, homem genial, para explicar a crise geral que hoje tolhe a Europa. Poderíamos tê-lo feito utilizando argumentos micro, como a emigração económica, ou os argumentos comportamentais e de costumes utilizados pelo BE (aborto, uniões de facto, casamentos gays e conexos), mas isso suscitar-nos-ía olhar para um espelho embaciado quando, afinal, o que pretendíamos era olhar o mundo através dum espelho límpido.
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