O trauma e o regresso da religião - por - João César das Neves -
O trauma e o regresso da religião
João César das Neves
Onosso tempo tem um trauma com a religião, que o deixa sempre embaraçado. Mas paradoxalmente somos tão religiosos como qualquer época anterior. A intelectualidade não deu por isto e trata a fé como folclórica e decadente, mas, vendo bem, o mundo actual é muito devoto. S. Paulo podia dizer-nos, como em Atenas: "Vejo que sois, em tudo, os mais religiosos dos homens" (Act 17, 22).
Os jornais não reparam, mas a esmagadora maioria da humanidade afirma pertencer a uma das grandes doutrinas. A influência dos cultos, em particular dos mais globais, cristianismo e islamismo, é crescente em todo o lado. E a presença da fé ultrapassa em muito a crença explícita. Assiste-se à expansão aberta das devoções descafeinadas, sobretudo nas zonas de decadência cultural, como a Europa: esoterismos, magias, superstições, paganismos, importados do Oriente ou da velha New Age. Como na Atenas de S. Paulo, os ídolos e altares são variados.
A juventude naturalmente não pode existir sem uma fé. Os que a assumem, vivem equilibrados; os outros são explorados por interesses sedutores. O rock e o metal, por exemplo, apresentam-se cada vez mais como avassaladoras galáxias de doutrinas metafísicas, com santuários, paramentos, liturgias e penitências. Os novos profetas organizam-se em bandas e a visita semanal à discoteca substitui para muitos a missa. O êxtase dos concertos imita as antigas apoteoses dionisíacas.
Até a letra de muitas canções lembra o Livro dos Salmos. Nominalmente tratam do prazer, mas só ganham sentido como orações. Frases como "não posso viver sem ti" ou "amar- -te-ei para sempre" são incompreensíveis se dirigidas à amada; mas referidas a Deus, tornam-se plausíveis e razoáveis. Até o Papa pode rezar, quase sem mudar uma vírgula, com as nossas canções, da velhinha Always on my Mind (1972) de Elvis Presley até a I Do It For You (1993) de Bryan Adams.
São os meios anticlericais que mostram bem como a religião ultrapassa o campo da religião. O cepticismo militante mostrou ser a fé do avesso. O fervor beato dos ateísmos, jacobino ou marxista, o dogma inabalável do cientifismo panteísta ou a mística apocalíptica dos movimentos ecológicos e naturistas, contêm todos os elementos das igrejas tradicionais. Os pregadores inflamados estão hoje não nos púlpitos mas em comícios esquerdistas e revistas radicais. Aliás, julgando-se imunes ao pietismo, as derivas espiritualistas de antigas seitas ateias repetem ingenuamente os seus traços mais condenáveis, do fanatismo furioso ao totalitarismo asfixiante.
Como podem ateus ou hedonistas ser religiosos, se não se referem Deus? A resposta é a mesma de S. Paulo. No nosso tempo, os movimentos esotéricos, agnósticos ou panteístas erguem altares ao "deus desconhecido" (cf. Act 17, 23), como a Atenas do século I.
Para compreender o trauma e o regresso à fé múltipla de Atenas, é preciso considerar a História recente. Ela começa no choque original da cultura moderna, as guerras da Reforma. Nessa época, em que detalhes teológicos se tornavam pretextos nos campos de batalha, as pessoas pacíficas não podiam falar de fé, sob pena de combaterem os vizinhos. Foi um tempo terrível! A razão por que os nossos intelectuais não percebem a religião, e só pensam em violência quando falam dela, vem da miopia imposta por esta obsessão. Este é o trauma.
Perdidas as raízes culturais, apareceram duas soluções. O iluminismo do século XVIII julgou responder com a religião natural, sem padres nem igrejas. E acabou na guilhotina. O positivismo do século XIX fez do homem armado com a ciência o único deus, e Marx, Freud, Sartre, os seus profetas. Com o Holocausto, a bomba e o gulag, ele revelou-se o pior dos ídolos.
Estas duas soluções, muito sedutoras, omitem a verdade mais evidente. A natureza e o homem não são deus, não se criam a si mesmos nem controlam o mundo à sua volta. Ou Alguém faz isso, ou então a vida e a realidade não têm finalidade e sentido. Mas a existência tem um propósito. Ninguém vive sem sentido. Esta certeza é o núcleo central do fenómeno religioso. E a confusão desse sentido é o deus desconhecido de Atenas.
Foi assim que o ateísmo, sem conseguir fundamento intelectual sólido ou resposta às questões humanas, se revelou uma crença arbitrária. Hoje, após a angústia da Reforma, o terror da Revolução e a perplexidade da guerra global, somos de novo, em tudo, os mais religiosos dos homens.
Só falta ouvir o que Paulo tem a dizer.
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