quinta-feira

Obrigado Sr. Gulbenkian. Bem haja Sr. 5%

Image Hosted by ImageShack.us Curioso como nos esquecemos de algumas pequenas coisas que nos ajudaram a crescer. Aqui fica um pequeno relato da minha experiência como utente da Biblioteca Itinerante Calouste Gulbenkian. Uma visita por mês era o que a minha vila tinha direito. Para uma miúda da beira interior com uma enorme curiosidade e muita vontade de ler, a carrinha da Gulbenkian era a melhor coisa do mundo! Às sete da noite lá estava ela, a carrinha Citroën, serie H, cinzenta, de chapa canelada, com taipais. Interessante como a memória funciona, lembro-me perfeitamente da primeira vez que lá fui com a minha mãe, devia ter cinco anos, também ela fora frequentadora assídua da carrinha da Gulbenkian, nos seus tempos de escola. A carrinha era conduzida por dois senhores, que estacionavam sempre no mesmo sitio, junto ao restaurante 'O Julio', quando chegavam fosse Verão ou Inverno já a canalha se acotevala para ver quem ficava a frente na bicha (era bicha que se dizia!). Pois isso significava ser o primeiro a entrar e a descobrir quais eram os 'novos' livros. O ritual era igual todos os meses, a janela da porta direita abria-se e um dos senhores pedia-nos o cartão e os livros que requisitamos no mês passado. A carrinha no interior estava forrada a livros do chão ao tecto, ao fundo havia uma bancada para se preencher a referência dos livros requisitados no cartãozinho previamente fornecido pelo funcionário da Gulbenkian. Uma vez lá dentro era o ver se te havias, porque não tinha muito tempo para procurar os três livros (máximo possível), e depois havia o condutor/bibliotecário, que mais parecia o polícia das fitas adesivas! Uma das coisas que me irritava era que só podia levar livros com fita adesiva verde, e está claro os de cor laranja ou, pior ainda, vermelha, os das prateleiras de cima eram precisamente os que queria levar. Muitos foram os livros que li durante os 12 anos que religiosamente visitei a carrinha da Gulbenkian. Recordo-me agora particularmente do livro 'Beatriz e o Plátano' de Ilse Losa. Os meus pais incutiram-me o gosto pela leitura mas foi definitivamente a carrinha da Gulbenkian que ajudou a cultivá-lo. A carrinha não só abriu as portas para o mundo da leitura mas criou também em mim um sentido de responsabilidade, e civismo e orgulho, pois quando se entregavam os livros a tempo e horas e estimados, podia eventualmete aceder-se aos tão desejados livros 'laranja' e 'vermelhos'. Mais tarde na minha vida de estudante visitei muitas bibliotecas; a Biblioteca Nacional com o seu hipnotisante painel de Tapeçaria de Portalegre de Guilherme Camarinha, a desactualizada Bibiloteca do Palácio das Galveias, no Campo Pequeno e a mãe de todas as bibliotecas para uma estudante de Arte em Lisboa, a Gulbenkian. Mas o cocktail de sentimentos causado pela carrinha da Gulbenkian, esse até hoje nunca foi superado. É com nostalgia que do alto dos meus 28 anos penso neste serviço que ajudou a fazer de mim o que sou hoje. Grata ao Sr. Gulbenkian e a quem iniciou e pôs em prática este serviço. (Sofia Gonçalves) ___________________________________________________________________________________ 9.3.05 21:21 (JPP) MEMÓRIAS DE BIBLIOTECAS (7ª série) Ao ver uma imagem de uma carrinha das bibliotecas itinerantes da Gulbenkian no seu blogue, explodi em memórias e, ao correr da tecla, quero declarar que muito de quem sou culturalmente, o devo a essa lata com rodas que ia visitar a minha terra, uma pequena vila sem direito a concelho a dez quilómetros de Coimbra, onde nos anos sessenta tive o direito a formar-me, graças aos conselhos de um notável bibliotecário-motorista, cujo nome não registei, mas que pegando num miúdo de dez anos me orientou bibliograficamente até à minha entrada na Universidade. Graças a ele, formei-me em marxismo quase clandestinamente logo aos catorze anos, o que foi uma adequada vacina, e talvez uma desilusão para o formador, mas agradeço, sobretudo, a perspectiva estética que me deu, sobretudo o Arrabal e a fundura daquele magnífico boletim inspirado por António Quadros que me trouxe a filosofia portuguesa, o Leonardo Coimbra, o Álvaro Ribeiro e o Agostinho da Silva. E eis como o meu bibliotecário, misto de surrealista e marxista, produziu em mim uma complexidade formativa deslumbrante, bem como o acesso a um mundo de sociedade aberta que as janelas e as portas fechadas do salazarismo elevavam à esquizofrenia. Bendita biblioteca que a tantos fez este bem de nos dar a liberdade de escolher. Bem gostaria de saber o nome de tal benfeitor, para o homenagear. Se alguém me souber dizer quem era esse empregado da Gulbenkian que percorria a zona rural de Coimbra nos anos sessenta, agradecia. (José Adelino Maltez) ________________________________________________________________________________
  • Memórias de berlindes, peões e também livros e algumas cabeças partidas no tempo em que o Sol raiava e as pessoas eram mais pessoas, apesar do dinheiro ser menos...
Confesso que já não me lembro a que horas estacionava a carrinha da Gulbenkian, que trazia os sonhos dos putos da minha idade, então com 12 anos vivendo para os lados de Abrantes. Os livros na altura não tinham hipótese de concorrer com os berlindes que se multiplicavam nos pirulitos. A bicicleta, o peão, a armada das ratoeiras, a ida às piscinas - que é como quem diz - partir a cabeça nos tanques dos arrebaldes e apanhar amoras em Amoreiras onde hoje passam estradas - enquadravam o ambiente que rodeava a carrinha do livro. Essa bela Citroen que de tão confortável até fazia adormecer os motoristas que se acidentavam. E nós dizíamos: tanta cultura derramada na estrada, por vezes lá se via um farrapo de Eça, uma côdea de Camilo ou umas páginas de Júlio Dinis na boca de alguma cabra mais esfomeada, que por não compreender o sentido da cultura mastigava páginas realistas como se de ervas se tratassem. Tirando o pituresco da coisa, a carrinha do Sr. 5% representou a cultura em trânsito, a possibilidade de trazer e levar páginas de cultura, saber, alegria, interrogação às populações que então viviam mais afastadas dos chamados pólos culturais, mas já se afeiçoavam à Gabriela Cravo & Canela. Isto apesar de hoje as pessoas nas grandes cidades verem mais TV do que lêm os clássicos. Depois cresci e veio a mobilidade. E em lugar de a carrinha vir até nós, beneficiando da sombra da amoreira que hoje já não há - ia eu até às bibliotecas, já sem magia e o cheiro da carrinha. Os cinco e as eventuras, alguns livros de história habitam ainda o meu imaginário. E muita da vantagem trazida pela Citroen formatou a minha maneira de ver e entender o mundo. A cosmovisão que tenho hoje seria necessáriamente diferente se a carrinha do Sr. 5 % não tivesse aparecido com os livros na bagagem. Hoje, quando vejo uma carrinha dessas (ou melhor, parecida) na venda do peixe em Lisboa - que ainda as há - lembro-me logo da Citroen cinza da Gulbenkian. A coisa parecia-me uma garopa gigante, e quando abria a boca nós entrávamos para sacar os livros, muitos ficaram por ler. Só que não é da cultura cultura, mas da cultura gastronómica que se trata. Com Eça ou com Savel ou linguado a memória ficou. E hoje quando penso no ouro negro do Sr. Gulbenkian lembro-me logo dos outros tempos, das pessoas de então, do sol que raiava, dos berlindes e dos peões que rolavam, das ratoeiras comigo a entalar os dedos e nunca a apanhar pássaros, da minha avó que os fritava lindamente, da poda das vinhas, da bicicleta que se tornou pasteleira, dos tanques das aldeias onde partíamos as carolas, dos montes e vales, enfim, do cheiro da terra. Tudo cultura que hoje já não há. Hoje as carrinhas só transportam pessoas nas cidades. Mas fazem-no de modo tão desumano que penso que já não se trata de livros nem pe peixe. Mas de gado... PS: a dada altura contaram-me a "estória" do Sr. 5 %... que veio para Portugal e deixou cá a massa e investiu em cultura e arte. O sujeito representou em mim uma tal dádiva de Deus que até julguei que esse multimilionário, por ser um homem tão bom e um bom homem, se disfarçava de motorista só para ter o prazer de ver em directo a alegria estampada na cara dos putos quando "assalatavam" a Citroen... Só que pelos vistos eram vários... E saber agora quem era o verdadeiro!? Enfim, uma tarefa digna para o Inspector Varatojo que, porventura, também frequentava a carrinha cinza, parecida com a carrinha do peixe que fez as delícias de muitos de nós.