sexta-feira

"Os filhos do caos" - por Alain Bertho - Sejamos claros: um mundo acabou, não há como voltar atrás'

Nota prévia: Uma entrevista tão interessante quanto esclarecedora acerca dos objectivos e métodos de acção do terrorismo globalitário. Mas também uma entrevista recheada de diagnósticos assertivos acerca da transição do mundo velho para o mundo novo, o mundo do risco, da contingência e da pura gestão do medo em que deixou de haver lugar às utopias e às esperanças. Eis uma entrevista com a marca dum pensador na qual vale a pena meditar. 
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(...) O horror faz parte da estratégia, como explica o tratado "Gestão de barbárie", escrito no Iraque pelo teórico jihadista – certamente um coletivo – Abu Bakr Naji antes do surgimento do Estado islâmico. (..) Eles não fazem a guerra para criar um estado, como numa luta pela independência: eles criam um "Estado" para fazer a guerra (...) Com o colapso do comunismo e do encerramento de toda perspectiva revolucionária, foi o futuro que perdemos no caminho. É a ideia do possível que desmorona. Não estamos mais em um processo histórico. Já não se fala mais do futuro, mas da gestão de risco e de probabilidade(..)Uma sociedade que já não consegue se reinventar leva as pessoas a manifestações de desespero e de raiva.(..)Foi a política como espaço de mobilização popular e de construção do comum que perdemos e é o que precisamos reencontrar.



Sejamos claros: um mundo acabou, não há como voltar atrás'

Segundo o antropólogo Alain Bertho, o século XXI abandonou o futuro em nome da gestão 

do risco e do medo, indiferente à ira das gerações mais jovens.



reprodução


Os perfis dos jovens europeus que se radicalizam e partem para a Síria para se juntar ao "Califado" do Estado islâmico, dispostos a morrer como "mártires", ou que sonham em fazê-lo, costumam suscitar a total incompreensão – ou interpretações extremamente simplistas – e, em ambos os casos, uma sensação de impotência. Como o Sr. analisa estes perfis?

Alain Bertho: Embora os números variem de uma estimativa para outra, pode-se afirmar que a França é o país europeu com o maior contingente no chamado Estado islâmico. Os voluntários estrangeiros do Daesh vêm de 82 países em todo o mundo. Mas nosso país tem uma relação especial com o epicentro geopolítico do caos, graças a seu passado colonial. Mas esta relação também é produto de nossas fraturas nacionais contemporâneas.



Não existe um perfil típico daqueles que partem para a Síria, o único traço comum sendo a juventude. Aproximadamente um terço são jovens convertidos ao Islã; há jovens oriundos das periferias, estigmatizados ao longo de anos; outros têm trabalho e família; alguns não freqüentavam mesquitas, apenas seus computadores. O trabalho de David Thomson, jornalista e especialista em jihadismo, é esclarecedor. Ele acompanhou e entrevistou vários jihadistas franceses. Todos relatam uma espécie de momento de revelação, que pode ser a conversão, uma ruptura e a descoberta de uma disciplina que dá sentido às suas vidas.

O sucesso do Estado islâmico se explica pelo fato de oferecer, a pessoas desestabilizadas, sentido ao mundo e à vida que podem levar. Ele lhes dá até uma missão. Por outro lado, aqueles que vêm matar e morrer no país onde nasceram e cresceram, têm um problema particular a resolver com seu país. Este conflito é pesado e vem de longe.
Mas como o Sr. explica o apelo do Estado Islâmico e de seus avatares em outros países, uma vez que seu projeto político se resume a implementar, na Síria e no Iraque, o Islã mais reacionário e intransigente que existe, enfrentando o Apocalipse e morrendo como um mártir?


Precisamos compreender que o que garante seu apelo é justamente o fato de ser uma oferta política de morte e desespero. Daí a gravidade da situação. Como diz Slavoj Zizek: “Evidentemente, é mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo”. Para os jihadistas, em um mundo de caos político, moral, econômico e climático, este fim está próximo. O projeto político do Daesh dá sentido às suas jornadas em direção à morte. Oferece-lhes um destino. A esperança de libertação individual e coletiva que era a bandeira das mobilizações do passado, no jihadismo é substituída pela problemática do fim do mundo e do juízo final. Para eles, a libertação é morrer como um mártir! Por isso, são muito determinados. "Só os mártires não têm piedade nem medo e, acredite, o dia do triunfo dos mártires será o dia do incêndio universal", profetizou Jacques Lacan em 1959. E aqui estamos. Se quisermos secar a fonte do recrutamento, é preciso refletir urgentemente sobre o que produz tamanho desespero.
Qual é a diferença entre a radicalização jihadista de hoje e a radicalização política encarnada pela luta armada ou pela ação terrorista dos anos 1970?
Há uma diferença essencial de objetivos. Depois de 1968, vimos a ascensão da ação armada com o Grupo Baader-Meinhof – ou Fração do Exército Vermelho – na Alemanha, as Brigadas Vermelhas na Itália ou o grupo de extrema esquerda Kakurokyo no Japão. De seu ponto de vista, aquelas pessoas sacrificam suas vidas pelo futuro dos outros. Cometem atos criminosos fadados ao fracasso, mas no contexto de uma luta por um futuro revolucionário que eles pretendem que seja melhor. Com o Estado islâmico, não há nada deste tipo: cada um sacrifica sua vida pela morte do outro. Querem somente arrastar todo mundo para o desespero, com apenas um consolo: os apóstatas, os incrédulos, os cristãos e os judeus não vão para o céu.
O horror faz parte da estratégia, como explica o tratado "Gestão de barbárie", escrito no Iraque pelo teórico jihadista – certamente um coletivo – Abu Bakr Naji antes do surgimento do Estado islâmico. Eles não fazem a guerra para criar um estado, como numa luta pela independência: eles criam um "Estado" para fazer a guerra. O Estado Islâmico só enxerga a paz no triunfo final do califado contra seus inimigos, cada vez mais numerosos. Mas desde 2001, a idéia de "paz como objetivo de guerra" (velha concepção de Clausewitz) já não é mais válida entre as principais potências engajadas em uma "guerra sem fim" contra o terrorismo. Quais são os objetivos da guerra ou os propósitos de paz da coalizão na Síria ou no Iraque? Não sabemos. O jihadismo nos arrastou para seu próprio terreno.
Em seu ensaio em preparação sobre "filhos do caos", o Sr. explica que o jihad – ou seja, a motivação religiosa – não é o único motor da radicalização. Quais seriam os outros?
Temos um problema com o fim do século XX e do colapso do comunismo. O fim do comunismo não é apenas o fim de regimes e instituições da Europa Oriental e da Rússia, é um conjunto de referências culturais comuns a todas as correntes políticas progressistas, que desmorona. Apesar da realidade repressiva dos regimes comunistas "reais", uma transformação social era, na época, ainda percebida como possível, e era parte de uma abordagem histórica, uma ideia de progresso. O futuro era preparado hoje. A hipótese revolucionária que inaugurou a modernidade (a Revolução Francesa) foi uma referência política comum tanto para aqueles que queriam uma revolução como para aqueles que preferiram transições pacíficas e "legais". Com o colapso do comunismo e do encerramento de toda perspectiva revolucionária, foi o futuro que perdemos no caminho. É a ideia do possível que desmorona. Não estamos mais em um processo histórico. Já não se fala mais do futuro, mas da gestão de risco e de probabilidade. Gerencia-se o cotidiano através de políticos que manipulam o risco e o medo como meios de governo, seja o risco à segurança ou o risco cambial (a dívida), que falam muito de aquecimento global, mas são incapazes de antecipar a catástrofe anunciada.

Os jovens, aqueles que encarnam biologica, cultural e socialmente o futuro da humanidade, sofrem especialmente as consequencias deste impasse coletivo e são particularmente maltratados. As sociedades não investem mais em seu futuro, sua educação ou nas universidades. A juventude é estigmatizada e reprimida. Países do mundo todo, do Reino Unido ao Chile, passando pelo Quênia, são marcados há anos por protestos estudantis, por vezes violentos, contra o aumento das taxas de inscrição nas universidades. Em toda parte, a morte de jovens por policiais gera revolta: veja as manifestações em Ferguson ou Baltimore, nos EUA; as três semanas de protestos na Grécia, em dezembro de 2008, após o assassinato do jovem Alexander Grigoropoulos por dois policiais; ou os cinco dias de revolta na Inglaterra após a morte de Mark Duggan, em 2011. Para estes poucos casos de protestos visíveis na mídia, existem dezenas de outros (como mostramos na entrevista "Aumento dos protestos: um fenômeno global" – em francês no link). Uma sociedade que já não consegue se reinventar leva as pessoas a manifestações de desespero e de raiva.

Com a globalização financeira, as desigualdades de renda e de riqueza se acentuam em uma velocidade inédita. Os Estados estão nas mãos dos mercados e dos financistas. As vitórias eleitorais mais progressistas podem se transformar em derrota pela simples vontade do Eurogrupo, em desprezo à vontade do povo, como os gregos experimentaram recentemente. Será que refletimos bem sobre como seria a revolta sem esperança? Essas fúrias radicais encontram-se hoje diante de tamanhos impasses que são capazes de abrir a porta a ofertas políticas de morte, como é a oferta do Estado islâmico.

É possível considerar a radicalização jihadista uma forma de revolta como outra qualquer? Ou seria mais adequado vê-la como uma nova ideologia totalitária e mortal que é preciso combater com todas as forças?
Ambos. Diante dos danos consideráveis e crimes que cometem, aqui e em todo lugar, devemos combatê-los. Mas se queremos ser eficazes, precisamos refletir sobre a revolta que está na raiz desses crimes. É preciso se perguntar o que pode levar um jovem de 20 anos de idade a se explodir ao lado de um McDonald’s em Saint-Denis (cidade da periferia parisiense). O que o leva até lá? O que podemos fazer para evitar que isso se generalize? A repressão são os bombeiros, mas temos de encontrar a origem do incêndio! Caso contrário, o recrutamento continuará, especialmente na França. A crise política é particularmente profunda em nosso país. A classe política está totalmente encerrada no espaço do poder e do Estado e cortada do resto da sociedade, em total dessintonia, e isso independentemente do partido. A política não é mais uma potência subjetiva capaz de reunir e de abrir possibilidades.
O peso e a força do movimento operário se apoiavam em sua capacidade de agregar populações variadas, incluindo imigrantes, em torno de uma esperança comum. O fim dos coletivos, da noção de classes sociais, da idéia de que existe um "nós" quase eliminou a consciência comum de uma ação ainda possível. O "Povo", tão caro a Michelet, se deslocou com o fim do fordismo e a política da cidade. A emergência das temáticas sobre a imigração e a ascensão da Frente Nacional (partido francês da extrema direita) são contemporâneas ao desaparecimento de uma subjetividade de classe unificadora. Pagamos caro por este deslocamento. Quando jovens são mortos pela ação de policiais nas periferias, constata-se a indiferença de grande parte da França. Foi o que aconteceu em 2005. O isolamento e estigmatização dos jovens dos bairros pobres levaram-nos às revoltas ocorridas em toda a França. Desde então, este isolamento e esta estigmatização só fizeram aumentar.
Se o que é preciso é oferecer possibilidades de ação, e até mesmo de revolta, contra a desigualdade, a discriminação ou a brutalidade do neoliberalismo econômico, por que os novos movimentos sociais e as formas pacíficas de protesto não seduzem mais?
Sejamos claros: um mundo acabou, e não haverá como voltar atrás. Não há espaço para nostalgia. Temos de olhar para frente e fazer um balanço das experiências do presente. Após o movimento antiglobalização no início dos anos 2000, o ano de 2011 representou uma janela de esperança. A Primavera Árabe começa em janeiro, com a morte de Mohammed Bouazizi, um jovem formado e desempregado, em Sidi Bouzid (Tunísia), e depois, em fevereiro, no Egito. Em seguida, o movimento espanhol Indignados ocupa a Puerta del Sol em Madri, em 15 de Maio. Os gregos, da mesma forma, protestam contra a austeridade, ocupando a Praça Syntagma, em Atenas. Grandes protestos também eclodem no Chile e no Senegal. Em setembro, é a vez do movimento Occupy Wall Street, contra as regras do mercado financeiro e a apropriação da riqueza nos Estados Unidos, e os acampamentos se estendem até Tel Aviv. Todas estas mobilizações da primeira geração pós-comunista abriram um espaço, mas isso não resultou, até hoje, em um movimento verdadeiro de transformação política.

O que resta hoje da primavera árabe? Os manifestantes sírios foram massacrados pelo regime, os líbios se matam entre eles, o Egito está quase de volta à estaca zero, e a Tunísia não consegue atender às necessidades sociais da sua população. A Tunísia é, aliás, na frente da Arábia Saudita, o país com o maior contingente entre os combatentes estrangeiros do Estado islâmico, com cerca de 3000 pessoas. Esta desilusão com a Primavera Árabe é sensível quando se observa a curva dos atentados. Ela mostra o aumento dos ataques no Oriente Médio a partir da invasão do Iraque pelos Estados Unidos, em 2003. O crescimento torna-se exponencial a partir de 2012, com o fim da primavera árabe e o início do caos geopolítico no Iraque e na Síria.
Por que não emergiu nenhuma perspectiva e alternativa política? E como a esquerda, ou o que resta dela, pode combater de forma eficaz a ascensão dessa nova ideologia totalitária?

O que chamamos por muito tempo de tradução política de uma luta para a mudança foi varrido pela experiência – e os fracassos – do século XX. O poder do Estado não aparece mais como o meio de transformação que deve ser alcançado, de uma forma ou de outra. Em 2011, manifestantes que derrubam Ben Ali na Tunísia e Mubarak no Egito deixam nas mãos de outros a tarefa de assegurar a transição e governar. Estamos testemunhando mobilizações admiráveis, mas que não se transforma em um meio de tomar o poder. Que não querem tomá-lo. Elas não têm "estratégia". Por enquanto, apenas a experiência do Podemos, na Espanha, tenta transpôr a mobilização dos Indignados a uma estratégia de poder. Em outros países, os períodos eleitorais geram cada vez mais revoltas. As eleições não são mais momentos de solução pacífica de conflitos sociais, e não apenas na África. E quando não há protestos, há queda na participação eleitoral, no mundo todo.
Foi a política como espaço de mobilização popular e de construção do comum que perdemos e é o que precisamos reencontrar. Com uma ponta de provocação, digo que a urgência agora é menos a "desradicalização" e a hegemonia das marchas militares no debate político e mais a ascensão de outra radicalidade, uma radicalidade de esperança coletiva, capaz de secar na fonte o recrutamento jihadista. Temos de recuperar o sentido do futuro e do possível, e não cair na armadilha dos terroristas, que é justamente a mobilização para a guerra.
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