sábado

Evocar Vergílio Ferreira no centenário que se secularizará

Nota prévia: Se fosse vivo, Vergílio Ferreira faria este mês 100 anos (a 28 de Janeiro), um século de existência física e, porventura, centúrias de metafísica, de elaboração mental, de sagesse mitigada com muita reflexão sobre si, sobre os outros, sobre o mundo neste devir permanente que é a existência e a consciência de si. Nas mais diversas formas e géneros literários, do ensaio ao romance. Com VF estamos sempre de pé, numa janela frente ao mar, outras vezes é numa esplanada, fumando um cigarro, ou nenhum para os dias em que fumamos dois, três ou quatro (ou 8!!!); vemos e auscultamos as noites quentes de Verão, assistimos à dinâmica imparável das ondas do mar, observamos a Lua a embater no espaço físico dos muros da nossa existência, acompanhamos os traços de luz do seu raciocínio até atingirmos os veios mais pálidos da nossa existência, povoada por essa angústia permanente e que é pensada no silêncio dos dias, na metafísica dos raciocínios, por vezes labiríntico dos quais nunca conseguimos sair. E não saímos porque somos vencidos pelo tempo. Com VF alguns homens dormem na resignação, outros vegetam na mais pura e obtusa ignorância acerca de tudo. Talvez esses vivam mais felizes. Numa felicidade breve, idiota, superficial. Com VF há noites escuras e momentos de alegria, breves e luminosos. Com este autor, talvez o mais plural no século XX literário, ora visitamos a alegria, o triunfo breve do corpo (a caminho rápido do envelhecimento) e somos sempre obrigados, sempre, a fechar a janela e a acender a luz de modo a poder visitar a esperança. A perfeição. Este também foi o signo sinal que ele partilhou connosco, e que aqui partido com outros à boleia da sua metafísica da existência, afinal, a de todos nós. 

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DIOGO VAZ PINTO
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A distância que começamos a ter em relação ao século XX, permite-nos traçar com maior propriedade essa ficção que é a fronteira entre o que fomos e estamos a ser. E uma figura como Vergílio Ferreira, que faria 100 anos no próximo dia 28, é um homem que testemunhou, e na sua obra reflete, o arco dos acontecimentos mais marcantes, devastadores e transformadores, que fizeram a história da segunda metade desse século. Ele emergirá no panorama cultural português como uma presença chocante como acabam por ser todas as que rompem com as grilhetas que um determinado bom senso impõe - pelas circunstâncias próprias de um lugar e do momento social e político que atravessa - à sensibilidade dos seus artistas, escritores, aos espíritos que se afinam segundo uma melodia apenas pressentida.
O centenário de Vergílio Ferreira, segundo tudo indica, será assinalado com grande dignidade, estando previsto um conjunto de importantes iniciativas que se desenrolarão ao longo de 2016 e que serão úteis para obrigar a atualidade a reapreciar e descobrir com renovado espanto a multifacetada obra de um autor que teve um papel claramente disruptivo na literatura portuguesa, e que viria a impô-lo como uma das figuras com maior influência na definição não apenas do romance e do campo da ficção portuguesa, mas ainda como um pensador que, em tudo aquilo a que se dedicou, expressou nos seus livros as grandes inquietações que nos deixaram um dos mais ferozes testemunhos das dores de crescimento de uma consciência portuguesa e um tanto provinciana que começava então a ganhar mundo.
A sua obra é perpassada por um agudíssimo sentido da falha humana, do absurdo da sua condição, mais do que um mal-estar, o desassossego - retomando o sentimento existencial de Pessoa cuja obra é companheira da sua na radical abertura que significou no nosso país - igualado por um ímpeto que o colocava do lado dos que não se contentam, dos que questionam furiosamente, convidam a crise a instalar-se no lugar das convicções.
Mais do que meras resistências, a sua postura fortemente crítica despertou-lhe ódios, com muitas das suas páginas a servirem de ajustes de contas. Mas para lá de um certo fel, do desgosto e da crescente oposição face à operação sindicalista que tomou conta do campo das letras, em Vergílio Ferreira há a todo o momento uma razão que se predispõe para o confronto de ideias e mesmo a polémica, afirmando-se como um dos mais combativos escritores portugueses do seu e de qualquer outro tempo.
 O seu percurso ficaria decisivamente marcado pela rutura com o neorrealismo, tornando-se uma espécie de dissidente daquele movimento que se impusera de forma hegemónica, numa denuncia que não deixa de ser o tipo de obsessão de uma sociedade sujeita à opressão de um regime ditatorial. Não se deixando cingir a uma visão do mundo alinhada com o horizonte disponível, Vergílio Ferreira buscou o seu, deixando-se seduzir pela aventura dos autores existencialistas franceses.
A propensão filosófica e o exercício de indagação metafísica tornaram-se traços distintivos da escrita do autor de “Aparição”, mas é curioso notar que esta componente parece ser o que mais fragiliza hoje aquela parte da obra mais comprometida com esse esforço, parecendo-nos um tanto datada na comparação com as obras de figuras cimeiras do existencialismo francês, como Sartre ou Malraux. Por outro lado, há um lado uma qualidade emotiva na escrita de Vergílio Ferreira, uma investigação das sensações, dos lugares afetivos e dos humores, uma capacidade de corromper a narrativa, impondo na prosa um fulgor poético que não acaba de nos surpreender.
Algumas iniciativas A Quetzal vem já publicando, há um punhado de anos, a obra completa de Vergílio Ferreira, sobretudo através de reedições, mas também de textos inéditos, fruto da parceria com a equipa que se encontra a trabalhar o espólio do autor, dirigida por Helder Godinho. Em 2016 esta empresa terá continuidade. Já se encontram disponíveis “O Caminho Fica Longe” (1943), “Aparição” (1959) e “Rápida, a Sombra” (1974). Em Fevereiro publicar-se-á “A Curva de Uma Vida” (1938) e “Promessa” (1947), obras póstumas editadas pela primeira vez em 2011. Em formato digital, serão publicados todos os volumes de Espaço do “Invisível” (ensaios) e de “Conta-Corrente” (diários). A metade do ano trará a reedição de “Cântico Final” (1960) e, em formato digital, de “Sobre o Humorismo de Eça de Queirós”, o primeiro ensaio do autor. No final do ano publicar-se-á “Onde Tudo Foi Morrendo” (1942).
Na Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço, na Guarda, está patente a exposição de fotografia “A Guarda em Vergílio Ferreira”, até 31 de Janeiro, entre outras atividades dedicadas à celebração do centenário de Vergílio Ferreira. Gouveia também acolherá, ao longo de todo o ano, diversas iniciativas, de que se destaca a exposição “Vergílio Ferreira - Os Caminhos da Escrita e o Fascínio da Arte”, organizada em parceira com a Biblioteca Nacional e que se encontrará em exibição no Museu Municipal de Arte Moderna Abel Manta, entre 29 de Janeiro e 26 de Março. No próximo dia 30 celebrar-se-á o colóquio “Vergílio Ferreira: Evocação, Evocações”, na Biblioteca Municipal de Gouveia. Ainda em Gouveia, e também na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, decorrerá, entre os dias 19 e 21 de Maio, o colóquio internacional “Vergílio Ferreira e o Apelo Invencível da Arte de Pensar”.
No Centro Cultural de Belém, em Lisboa, terá início em Fevereiro o ciclo “Vergílio Ferreira e Mário Dionísio: Literatura, pensamento e arte”, coordenado por Maria Alzira Seixo. Já a Universidade de Évora, entre 29 de Fevereiro e 2 de Março, organizará o congresso internacional “Vergílio Ferreira: entre o silêncio e a palavra total”, cuja programação incluirá, no dia 1 de Março, a cerimónia de entrega do Prémio Vergílio Ferreira 2016 ao escritor açoriano João de Melo.
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