quarta-feira

Nuno Teotónio Pereira - um homem completo num Portugal problemático, colonial e em transição para a democracia


Nota prévia: Nuno Teotónio Pereira - um homem plural, corajoso, sério e sem medo de afrontar a ditadura, ao tempo em que ela era mais feroz e produzia mais danos às pessoas e às famílias que afrontavam a ditadura de Salazar. Além de arquitecto teve uma grande intervenção cívica e política e contribuiu de forma decisiva para assegurar a transição da ditadura para a democracia em Portugal. Por isso, aqui o evoco e deixo um forte abraço ao Miguel Teotónio Pereira neste dia difícil. 
- Veja-se a esclarecedora entrevista de José Pedro Castanheira (e outros) na qual se percebe a encruzilhada do Portugal pré-democrático e do turbilhão de ideias, projectos em que aqueles que não alinhavam com a ditadura tiveram de recorrer para assegurar essa transição para a democracia, a liberdade e o desenvolvimento, o qual ainda é pouco sustentável. 







Foi a primeira vez que saiu de Portugal?
Sim. Voltei a Espanha ainda durante a guerra civil, quando o meu tio Pedro, que gostava muito de mim, foi nomeado por Salazar agente especial junto do Governo do Franco, em Burgos. Ele tinha um filho, o Pedrinho (mais novo que eu), e como achava que eu era uma boa companhia convidou-me várias vezes para ir ter com ele a Espanha. O corpo diplomático costumava passar as férias em San Sebastián, e em 1938 fomos os dois no Sud Express até lá. O meu tio recebeu um telefonema da frente da Catalunha, na altura da batalha do Ebro - a última grande contraofensiva do exército republicano -, a dizer que tinham morrido dois oficiais portugueses que se haviam oferecido como voluntários para integrar os Viriatos. Fomos de carro até Saragoça e depois ele seguiu para Portugal, para as cerimónias fúnebres. Voltei em 1940, na altura da ofensiva do Hitler sobre a França. Em Bordéus estava o cônsul Aristides de Sousa Mendes e havia muitos refugiados a passar a fronteira. O exército alemão já tinha chegado aos Pirenéus, e tenho fotografias de soldados fardados a passear ao domingo em San Sebastián como turistas.

O seu tio Pedro teve alguma intervenção junto dos refugiados?
Interveio foi junto do Aristides de Sousa Mendes. Salazar deu-lhe indicações para ir a Bordéus pôr o cônsul na ordem. E ele foi.

Numa das suas viagens a Espanha foi acompanhado pelo inspetor Rosa Casaco, da PIDE...
Creio que foi em 1940, quando fomos ter com o meu tio, já embaixador em Madrid, num Chrysler daqueles grandes. O Rosa Casaco era o correio diplomático entre Lisboa e Madrid e acompanhou-nos. Mandava o motorista parar, saía do carro e disparava a máquina. Era realmente um grande fotógrafo. Nunca mais o vi.

Como era a sua relação com o seu tio? Ele era das figuras mais importantes do salazarismo.
Eu era adolescente, ele gostava muito de mim, e tínhamos uma ótima relação. Depois, as nossas relações foram-se tornando menos cordiais. Ele foi embaixador quase toda a vida: Madrid, Rio de Janeiro, Washington, Londres... Quando passou a ministro da Presidência, em 1959, praticamente não tive relações com ele. Em 1958 tinha havido as eleições do Humberto Delgado, e eu assumi publicamente a oposição ao regime, assinando dois manifestos.

Alguma vez ele comentou a sua atitude?
Não me lembro. Houve uma altura em que evitávamos encontrar-nos. Antes, ele fora ministro do Comércio, e Salazar achava que era demasiado avançado na parte social. Foi quem fundou a Sacor, para refinar o petróleo, e a Covina, para produzir vidro industrial. Depois construiu o bairro dos Olivais, em Lisboa, onde juntou prédios construídos pelo Estado, com rendas acessíveis, e imobiliário de privados, tudo misturado para evitar guetos. Estruturou o Gabinete Técnico de Habitação, com gente qualificada, um planeamento rigoroso e projetos de qualidade. Tudo isso se perdeu.

Ele era germanófilo?
Não, não era. Era de direita, mas anglófono, amigo pessoal do embaixador inglês em Madrid, Samuel Hoare. Trabalhou para que a Espanha se mantivesse neutral na II Guerra Mundial, quando ainda era eminente a vitória do Hitler.

Em 1933, quando foi o Plebiscito Constitucional, acompanhou o seu pai a votar...
O pai e a mãe. Nas eleições no Estado Novo as mulheres só podiam votar se fossem chefes de família - mas as mulheres das pessoas de confiança, como a minha mãe, também votavam. Lembro-me de pessoas da família irem votar a vários sítios em Lisboa. Era uma aldrabice completa.

Foi fardado?
Com uma camisa azul que a minha mãe me tinha comprado, igual às do movimento do Rolão Preto, que depois acabou por ser afastado pelo Salazar. Em 1936, quando a Mocidade Portuguesa foi criada, entrei voluntariamente. Participava nas paradas da Avenida da Liberdade.

Conheceu Marcello Caetano?
Conheci. Era muito amigo do meu avô. Mas conheci-o melhor quando ele já tinha deixado a Mocidade Portuguesa. Em 1943 fiz parte de um grupo de estudantes que organizou um ciclo de conferências sobre Lisboa, com o Vitorino Nemésio e o Orlando Ribeiro. Fomos a casa do Marcello, para apadrinhar a iniciativa, e ele até me ofereceu o seu livro "Por Amor da Juventude", com uma dedicatória.

Porque é que aderiu ao nacional-sindicalismo e aos "camisas azuis" de Rolão Preto?
Tive uma educação muito nacionalista, muito de direita, monárquica e católica. O meu pai sempre foi monárquico. Em casa ouvíamos muito a rádio, e no final da emissão, quando tocava 'A Portuguesa', ele desligava sempre o aparelho por causa das suas ideias monárquicas.

Durante a guerra ouviam a BBC?
Muito. Recordo-me bem de ouvir o Fernando Pessa. O meu pai era o segundo de seis irmãos, todos anglófonos, à exceção de uma tia, terrivelmente nazi.

Voltemos ao nacional-sindicalismo...
Eu gostava muito do Rolão Preto. Sempre que havia paradas, ia assistir aos desfiles, em que apareceriam dois tanques, os únicos que havia em Portugal: o "Pátria" e o "República". A 18 de julho de 1936, dia do levantamento do Franco em Espanha, houve um grande comício nacionalista no Campo Pequeno, de repúdio pelo bolchevismo. Estive lá, estava completamente cheio. Em 1934 também estivera no comício do Teatro de São Carlos, para a criação dos sindicatos nacionais.

Você não tinha idade, mas se tivesse ter-se-ia alistado nos Viriatos?
Isso não. Daí até fazer a guerra ia uma grande distância.

Dia a dia. Teotónio Pereira e a segunda mulher, a escultora brasileira Irene Buarque. Conheceram-se em 1974 e casaram-se em 1982. Vivem em Lisboa, na casa em que o arquiteto mora há 63 anos. Todos os dias ela lhe lê o jornal. Para breve aguardam, ansiosos, o primeiro bisneto
Dia a dia. Teotónio Pereira e a segunda mulher, a escultora brasileira Irene Buarque. Conheceram-se em 1974 e casaram-se em 1982. Vivem em Lisboa, na casa em que o arquiteto mora há 63 anos. Todos os dias ela lhe lê o jornal. Para breve aguardam, ansiosos, o primeiro bisneto
ANTÓNIO PEDRO FERREIRA
Casou-se em 1951...
Quando me casei, aluguei uma casa já aqui no bairro de São Miguel, que é estupendo. Participei na construção do bairro, porque, ainda antes de acabar o curso, fui contratado pela Câmara para acompanhar as obras do bairro de Alvalade e da Avenida de Roma. Aquando do meu segundo filho foi diagnosticado à minha mulher um problema de coração. A nossa casa não tinha elevador e tivemos de mudar para esta, já com elevador, onde vivo há 63 anos.

O que fez o clique na sua cabeça e o levou a passar a contestar o regime?
Foi uma coisa muito gradual. Durante a II Guerra Mundial ainda estudei alemão, convencido que era a língua do futuro. Estudei com uma fräuline em casa do meu pai e no Instituto Luso-Alemão, que é hoje o Goethe Institut. O diretor era um nazi ferrenho, que aparecia sempre fardado nas paradas. A entrada na faculdade e o casamento tiveram muita influência. A minha primeira mulher, Natália Duarte Silva, era uma pessoa rebelde, de esquerda, também filha da burguesia. Tinha casado pelo civil com 16 anos, conheci-a na Caixa de Previdência, onde era secretária, e começámos a namorar. Era agnóstica, ateia mesma, e divorciou-se. Esperámos os dois anos exigidos pela lei para ela poder casar outra vez. Casámos pela Igreja, mas segundo um regime especial destinado a casais em que um dos cônjuges não é católico. Foi na Igreja de Fátima e o padre foi o meu orientador espiritual da juventude, um jesuíta, que aceitou a contragosto, padre João Cabral, que depois foi missionário em Timor e construiu o Colégio de São João de Brito.

Entretanto, já tinha deixado cair o "h" de Theotónio Pereira...
Achei que era muito arrogante. Ainda hoje embirro com as pessoas que preservam a grafia antiga, anterior à reforma de 1911. O meu pai deve ter ficado aborrecido, mas não me chateou muito.

Quando entrou em Belas-Artes, até a forma de vestir era diferente da dos seus colegas: ia sempre de fato...
Cheguei até a usar chapéu de feltro. O meu tio Pedro insistia muito nisso: "Uma pessoa como deve ser tem de usar chapéu."

Conheceu o bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes?
Eu fui um dos que recebeu uma cópia da carta que escreveu ao Salazar. Ele não a tornou pública, mas enviou-a a uma série de pessoas amigas. Depois foi impossibilitado de entrar no país, e cheguei a ir ter com ele a Salamanca. Já com o Marcello Caetano, fomos ter com ele a Lourdes, para lhe dizer que não voltasse, porque, exilado, era uma bandeira que tínhamos mas que iríamos perder. Não o convencemos.

A partir da sua casa em Marvão, ajudou várias pessoas a passar para o lado de lá da fronteira...
O Mário Murteira falou-me um dia das casas baratíssimas que havia no interior das muralhas de Marvão, uma vila lindíssima. Fui lá no fim de semana seguinte, no meu 4L, e comprei uma casa por oito contos. É uma casa do século XVI, pequena, mas de três pisos, com uma vista fabulosa! Nem regateei! A certa altura, um amigo nosso veio dizer-nos que havia um estudante que queria fugir à guerra colonial e precisava de ajuda para passar a fronteira. Oferecemo-nos para o ajudar.

Como é que fazia?
Ia eu, a minha mulher e os meus filhos, fazíamos uma espécie de piquenique, com um farnel. Deixávamos o carro na estrada e depois íamos a pé, por aqueles atalhos, até uma pequena povoação do lado espanhol, que tinha uma loja que vendia uma coisa que não havia em Portugal e era muito festejada: Coca-Cola. Do lado de lá havia um carro que os levava até Cáceres, onde apanhavam um comboio para França.

Esteve ligado à Ação Católica?
Não, porque estava ligado aos jesuítas. Mas claro que conhecia muita gente da JUC e sobretudo da JOC: os padres Manuel da Rocha e Abel Varzim, que me influenciaram imenso nas questões sociais. O Rocha foi mandado pastorear uma comunidade açoriana nos EUA. O cardeal Cerejeira era especialista nisso: aos padres incómodos mandava-os lá para fora...

Conheceu o cardeal Cerejeira?
Conheci. Com um grupo de arquitetos e artistas fundei o Movimento de Renovação de Arte Religiosa. O Cerejeira andava a fazer igrejas que nós considerávamos de estilo ultrapassado, como as de São João de Brito, de Santo Condestável e de São João de Deus. Fomos ter com ele, mas desviava sempre a conversa. Começava a falar de outros assuntos, era muito palavroso e hábil, não nos dava oportunidade de falar daquilo que queríamos. Saíamos de lá sempre chateados.

Esteve em Fátima quando veio cá o Papa Paulo VI, em 1967?
Não estive, deliberadamente. Mas estive na organização de um abaixo-assinado ao Papa repudiando a guerra colonial, que até foi assinado por gente com responsabilidades dentro da Igreja, como membros da Ação Católica. Houve pessoas, como o Pereira de Moura, que disseram: "Eu assino, mas a carta não pode ser divulgada de maneira nenhuma, nem sequer a pessoas de confiança." Por causa disso, a carta perdeu-se. Nunca foi divulgada, mas foi entregue ao secretário do Papa.

No ano seguinte, Paulo VI publicou a encíclica "Humanae Vitae", proibindo o uso de contracetivos.
Houve um abaixo-assinado de católicos a protestar contra a encíclica. O padre João Cabral, com quem já não falava há alguns anos, escreveu-me a dizer que tinha sabido que eu assinara e que, para ele, era como se eu tivesse morrido! Que dureza! Felizmente que depois conhecemos outro jesuíta absolutamente o contrário: o padre Manuel Antunes, com quem fizemos grande amizade.

Esteve na vigília de São Domingos, na passagem de 1968 para 1969?
Fui um dos organizadores, assim como a Sophia de Mello Breyner, que fez a letra do poema "Vemos, Ouvimos e Lemos" - a música foi do Francisco Fernandes. No final da missa, presidida pelo Cerejeira, manifestámos o interesse em organizar uma vigília; ele lá disse que sim, embora chateado, desde que o prior também ficasse. O cónego Correia de Sá ficou toda a noite a policiar tudo, mas sem sucesso. Era um grupo muito grande, de mais de 50 pessoas... Quando saímos, às 8h da manhã, havia agentes da PIDE à porta, mas não houve repressão.

Você editou um livro póstumo da sua mulher.
Em 1973. Chama-se "Cada Pessoa Traz em Si Uma Vida", são poemas e outros escritos. Ela converteu-se ao catolicismo, e passámos a ter uma vida muito ativa no aspeto católico. Uma grande amiga dela, muito católica, convenceu-a a deixar a pílula, substituindo-a pelo método das temperaturas. Engravidou, mas não podia ter mais filhos, era um grande risco. Ela e o feto morreram no parto. Tinha 40 anos.

Na sua biografia, há quatro detenções pela polícia política. Quando é que se estreou?
Houve um abaixo-assinado de católicos contra as torturas da PIDE, na sequência da campanha do Delgado. Fomos todos ouvidos na sede da PIDE, na Rua António Maria Cardoso. O meu avô paterno vivia num quarto andar paredes-meias com a sede da PIDE. Fiquei assombrado como é que eles conviviam com a PIDE e com os gritos das pessoas a serem torturadas e que eu depois ouvi em Caxias... Nunca falaram nisso! Numa das vezes em que lá estive, vi pela janela uma tia minha a estender a roupa, a três ou quatro metros, a trautear. Fiquei mudo.

A segunda detenção...
...foi quando era presidente da direção da cooperativa Pragma e a PIDE fechou a sede, em 1967. Estive preso uns dias e trataram-me com o máximo respeito.

Depois veio a vigília da capela do Rato, em 1973.
Aí já foram 15 dias em Caxias, mas também fui bem tratado. O meu filho Miguel também foi preso, era colega do Francisco Louçã. Raparam a barba a todos os que a tinham, mas deixaram-nos o bigode. Foi o barbeiro de Caxias que me disse que estava lá um filho meu. Mas da última vez que me prenderam, em 1973, mal entrei em Caxias disseram-me: "Desta vez tenho ordens do senhor ministro para o tratar como deve ser." Caíram logo em cima de mim, à pancada. Felizmente desmaio com facilidade e perdi rapidamente os sentidos.

Foi um dos organizadores da vigília do Rato?
Sim, mas mantive-me de propósito na sombra, porque já era muito conhecido. O Carlos Antunes diz que foram as Brigadas Revolucionárias [BR] que organizaram. Não é verdade: só colaboraram.

Paralelamente, as BR provocaram o rebentamento de dezenas de petardos. Esteve envolvido nisso?
Não. Uma vez fui aliciado para as BR pelo escritor Nuno Bragança, que estava a viver em Paris e me propôs que participasse numa operação de entrada de armamento. Hesitei muito, porque nunca tive vocação para essas coisas. A certa altura conheci o Carlos Antunes, das BR, que estava clandestino e marcou um encontro comigo perto do IPO; deu-me um livrinho para eu estudar com atenção.

Que livrinho era?
Um manual de fabrico de explosivos. Nunca tive jeito para ações desse tipo e passados uns dias devolvi-lho.

Mas a sua última prisão foi por causa de uma mala com armas...
Foi uma asneira, porque achei que tinha de ajudar uma pessoa amiga, que me apareceu muito aflita e com medo de ser presa, a dizer que fora detida uma pessoa que lhe tinha passado uma mala grande e me pediu para a pôr num sítio seguro. Arranjei um sítio muito mal enjorcado. Lembrei-me do local secreto que eu e o Luís Moita tínhamos arranjado como sede do "Boletim Anti-Colonial": a casa da Luísa Cabral, uma amiga nossa, solteira, onde recebíamos muita documentação. Prenderam a pessoa que me pedira ajuda, ela deu o meu nome e vieram a casa buscar-me. Fui torturado, não resisti e acabei por dizer onde estava a mala.

A mala tinha...
Nunca cheguei a saber ao certo. Só soube que era armamento da LUAR.

Foi torturado...
Pois... Sono, pancadas, chicotadas. O pior foram as chicotadas nas pernas. Só aguentei dois dias e duas noites de tortura do sono - muito pouco! Não tinha preparação para aquilo. A certa altura apareceu um agente em tom amigável e eu fui na conversa. Estava tão mal de cabeça que pensei que aquilo era sincero. Acreditei e fui dizendo mais algumas coisas.

Houve muita gente torturada que falou na prisão. O mais normal, se calhar, até era falar...
Está bem, mas é chato.

Denunciou muitos nomes?
O Luís Moita, por exemplo, que fazia a ligação às BR. A Luísa Cabral também foi presa.

Conversou mais tarde com essas pessoas?
Sim. Foi horrível ouvir os gritos das pessoas a serem torturadas em Caxias. Gritos lancinantes! Um horror!

Esteve numa cela sozinho?
Durante os interrogatórios. Depois fui para uma cela coletiva. Conheci gente muito boa, como um jovem da LUAR. O Palma Inácio estava por cima da nossa cela, comunicavam por morse e desafiou-me para uma partida de xadrez, mas como não sabia jogar disse que não. Consegui que me mandassem do ateliê uma pequena prancheta para fazer projetos, lápis e canetas (não permitiram compassos porque tinham bicos). Esse companheiro gostou tanto de me ver a desenhar que depois tirou o curso de Arquitetura no Porto.

Esteve preso quanto tempo?
Fui libertado depois do 25 de Abril, a 27. Felizmente, porque tinha ali para vários anos de cadeia. Tive sorte!

Nas eleições de 1969 estivera ligado à CDE ou à CEUD?
Fui ativo na CDE, mas não chegámos a tempo de apresentar a lista no Governo Civil de Portalegre. Eu seria o número um, talvez por ser o mais velho. Depois do 25 de Abril, nas eleições para a Constituinte, fui outra vez cabeça de lista do Movimento de Esquerda Socialista [MES] em Portalegre. E quando foi do Bloco de Esquerda, que apoiei inicialmente, voltei a sê-lo. Nunca fui eleito.

Porque se afastou do Bloco?
A minha perspetiva é que as organizações que lhe tinham dado origem (UDP, PSR e Política XXI) se dissolvessem e se formasse um novo partido, diferente. Mas esses partidecos antigos continuaram... Discordei e escrevi uma carta a criticar e a desligar-me.

Foi alguma vez convidado a aderir ao PCP?
Não. Só para entrar num movimento que estava na sua órbita, as Juntas da Ação Patriótica. Em relação ao PC consegui manter sempre as minhas distâncias. Faziam de conta que todos aqueles horrores do Estaline não tinham existido...

Conheceu Álvaro Cunhal?
Falei uma vez com ele, durante a independência de Moçambique. Uma conversa com pontos de vista divergentes, mas muito cordial.

E Mário Soares?
Somos amigos. Quando foi desterrado para São Tomé, em 1968, fui ao aeroporto. Estava lá muita gente a protestar e a certa altura apareceu a polícia com bastões e ainda apanhámos. Na altura do MES, o PS era o nosso inimigo principal, achávamos que era muito reformista. O Jorge Sampaio é quem conheci melhor. O grupo dele, que deu origem ao MES, teve várias reuniões clandestinas antes do 25 de Abril no nosso ateliê, na Rua da Alegria. Foi por intermédio do Nuno Portas, meu sócio.

No congresso do MES de dezembro de 1974, quando foi a cisão do grupo de Sampaio, você continuou no partido...
Essa cisão foi um desastre. Saíram os mais brilhantes e maduros, ficaram os mais novos e radicais, como o Ferro Rodrigues e o Augusto Mateus. Se não tivesse havido a cisão, o MES poderia ter eleito alguns deputados à Constituinte e ser uma espécie de Bloco de Esquerda, uma alternativa. Assim, o PS e o PC tomaram conta da esquerda. Um dos meus falhanços foi essa cisão. Recebi uma carta aflita do Luís Salgado Matos, que estava no governo provisório de Moçambique, pedindo-me para evitar a cisão - e não fui capaz de fazer nada! Fui eu que fiz o discurso de encerramento do congresso, mas não fui eu que o escrevi...

E quem foi?
O Ferro Rodrigues! Nunca tive jeito para essas coisas, de modo que li um discurso feito por outro...

O MES esteve envolvido no PREC até ao pescoço.
Eu não estive ativo no 25 de Novembro, mas houve gente que participou. A Catalina Pestana, por exemplo, foi encarregue de organizar o abastecimento para o caso de termos de passar à clandestinidade. Houve militantes do MES selecionados para uma espécie de milícias, armadas pelas BR, para combater os Comandos da Amadora. Felizmente não chegaram a fazer nada.

Há pouco teve uma frase lapidar: "o PS era o inimigo principal". Não foi um erro de análise?
Foi um erro. Embora eu sinta que, sem a cisão, o MES poderia ter sido uma alternativa à esquerda do PS, que se encostou muito à direita e ao capitalismo. Muitos anos depois, eu e a minha mulher, Irene Buarque, acabámos por aderir ao PS, quando o Ferro Rodrigues foi eleito secretário-geral.

O CIDAC foi uma criação sua e do Luís Moita e que a sua filha Luísa prolongou...
O "Boletim Anti-Colonial" serviu de base ao CIDAC. Primeiro como Centro de Informação e Documentação Anti-Colonial e, mais recentemente, Centro de Intervenção para o Desenvolvimento Amílcar Cabral.

Deixou de ser crente?
A certa altura, sim, muito por causa do episódio da morte da minha mulher. Não foi imediato, mas ficou sempre uma ferida. Depois meti-me na política e acabei por chegar à conclusão que o sobrenatural não me dizia nada. Mas, olhando para toda a minha vida e para a minha formação, acho que sou católico, ainda que não praticante. Sou crente.

Qual a sua obra em que mais se revê?
É o edifício "Franjinhas", em Lisboa. Muitas das obras importantes que fiz foi em colaboração, sobretudo com o Nuno Portas. O "Franjinhas" foi um projeto com o João Braula Reis e vivi-o intensamente, até ao pormenor. Houve um crítico, até elogioso, que lhe chamou "Estendal", mas o nome não pegou. "Franjinhas" era uma série de televisão muito popular na época, com um cão que tinha uma franjinha.

Foi um dos quatro Prémios Valmor que ganhou.
Os outros foram a Igreja do Sagrado Coração de Jesus (com Nuno Portas), um prédio de habitação nos Olivais Norte, em Lisboa (com António Pinto Freitas), e a estação de Metro do Cais do Sodré (com Pedro Botelho). Mas um dos trabalhos de que mais me orgulho é o Bloco das Águas Livres, em Lisboa, feito com o Bartolomeu da Costa Cabral.

Qual foi o seu último trabalho?
O Programa POLIS da Covilhã, em parceria com o Luís Cabral. Anos antes, tinha feito a remodelação da Praça do Município, em que também participou a minha mulher, Irene.

Chegou a utilizar as novas tecnologias?
Tentei, mas desisti. Não fui capaz.

A sua arquitetura é muito marcada pela economia de meios, sem arabescos...
Dentro da arquitetura moderna, que sempre defendi, é despojada, sem ornamentos. Nunca fui dado a escolas ou tendências na arquitetura. Os meus trabalhos são, no fundo, diferentes dos outros porque nunca fui alinhado com nenhuma escola. Pode-se falar de simplicidade formal, mas com a criação de espaços para atender às necessidades e aos problemas. Sustento três princípios essenciais proclamados pelo arquiteto romano Vitrúvio, que deu uma definição lapidar da arquitetura, que tem de obedecer a três coisas: a firmitas (consistência e boa qualidade da construção), a utilitas (funcionalidade) e, por fim, a venustas (beleza ou estética). Ele fala nisso como um tripé, devendo haver um grande equilíbrio entre os três. A Casa da Música, no Porto, é o melhor exemplo de um valor que prevalece sobre os outros: a estética, sacrificando muito a funcionalidade. É uma espécie de labirinto, com espaços que sobram e não servem para nada, sendo difícil passar de uns sítios para outros. Agora há muito o culto da imagem.

Culto da imagem da arquitetura e do arquiteto.
Exatamente.

Qual é a diferença entre conceber um templo, uma fábrica ou um teatro?
Nas igrejas é preciso ter uma dimensão vertical. Há um espaço na assembleia, parecido com o de um auditório, em que as pessoas se reúnem e convergem, estando à volta do altar. Além disso, tem de haver um elemento vertical para as distinguir de um auditório normal, de ligação ao sobrenatural. Veja a igreja do Siza Vieira, em Marco de Canaveses. A igreja é muito bonita, tem essa ligação vertical, sobretudo através da porta, altíssima. Mas, no que diz respeito ao resto, é um retrocesso.

Porquê?
Porque é uma nave retangular, em que as pessoas estão sentadas atrás umas das outras, em vez de estarem à volta do altar, que está lá ao fundo... Com uma agravante: não há bancos, mas cadeiras individuais, uma coisa que nunca se viu em Portugal. As cadeiras apelam ao individualismo. Os bancos de correr podem estar cheios mas há sempre lugar para mais um... Eu fiz-lhe essa crítica.

Mas foi aplaudida pela Igreja...
Sim, e é uma romaria entre os arquitetos, que vêm de toda a Europa para a ver. É de facto muito bonita, mas falha nesse aspeto.

Como olha para a arquitetura atual?
Em geral, é demasiado dominada pela imagem. Em prejuízo dos outros atributos, sobretudo a funcionalidade. É o preço de ser original à força. É o culto do objeto.

Qual o arquiteto com quem mais gostou de trabalhar?
O Nuno Portas.

E qual é o melhor arquiteto português?
Não estou muito atualizado, mas penso que continua a ser o Álvaro Siza Vieira. Nunca fiz nenhum projeto com ele. Temos estilos muito diferentes.

Sei que deixou crescer a barba em Cuba, há mais de meio século!
Por influência do Che Guevara, claro! Fui a Havana participar num congresso da União Internacional dos Arquitetos [UIA], em 1963, quatro anos depois de a revolução triunfar. Assisti na abertura do congresso a um discurso do Fidel. No dia seguinte discursou o Che e fiquei entusiasmado com aquilo, claro. Resolvi trazer o discurso do Fidel gravado e, embora com muita dificuldade, lá consegui uma bobina. O discurso do Che trouxe-o por escrito. Vim de lá já com a barba crescida. Quando cheguei fiz uma sessão aqui em casa para alguns amigos, entre os quais o Jorge Sampaio. Ouvimos o discurso do Fidel em conjunto. Organizei uma outra sessão no Sindicato dos Arquitetos, que era uma coisa oficial, mas com gente de confiança; foi na Sociedade Nacional de Belas-Artes. Anos depois, a PIDE veio aqui a casa, apanhou essa bobina e levou-a, mesmo sem saber o que era.

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